Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Sete anos após fim da antiga MTV Brasil, acervo deixa ex-sede

Os Camargos Zeca e Hebe no VMB 1996: relíquias / Reprodução

Algo em torno de 40 mil fitas Betacam analógicas deixaram finalmente o edifício que sediou a antiga MTV Brasil (aquela do Grupo Abril, de sinal aberto), no Sumaré, até setembro de 2013, quando o canal saiu do ar. Quase sete anos após o seu fim, a emissora tem sua rica memória preservada em um espaço previamente preparado para receber o acervo de cenas memoráveis no edifício da Editora Abril na Marginal Tietê,ou seja, sob os olhos de seu proprietário.

O TelePadi apurou que a mudança foi feita entre sexta-feira (3) e esta segunda (6). Quase nada desse material está digitalizado, processo que demanda investimento e faz parte dos planos da Abril, de preferência com algum patrocínio.

A demora na transferência de abrigo físico enfrentou uma série de acontecimentos, incluindo a própria reestruturação do grupo Abril, que de lá para cá se desfez de vários andares do edifício da Marginal Pinheiros, de títulos de revistas e do núcleo de educação.

Além da reestruturação da empresa, a Abril chegou a discutir, em vão, a venda do material à Viacom, dona do nome MTV e controladora da atual MTV Brasil, que funciona na esfera paga e nada tem a ver com aquele canal vanguardista que acabou em 2013.

Memória no Brasil já é questão frágil, e no caso de TV, então, é escárnio. Pouco se sabe sobre o que restou da Tupi, da Manchete e da Excelsior, três canais de grande relevância que fecharam as portas. Parte disso estava na Cinemateca, que enfrentou uma enchente com danos notáveis, sem interesse do governo em sua recuperação.

 

O acervo deixou o antigo prédio em várias caixas

De 1990 a 2013, a MTV Brasil revelou talentos e formatos fora da curva da televisão convencional, gente de uma vanguarda que viria a alimentar a Globo, como é o caso de Marcelo Adnet, Tatá Werneck, Fernanda Lima, Dani Calabresa, Cazé Pecini, Zeca Camargo, Luiz Thunderbird, Astrid Fontenelle, Maria Paula e Juliano Enrico, entre outros. Alguns desses não foram exatamente revelados pela velha MTV, mas foi lá que tiveram suas habilidades criativas mais desenvolvidas e exploradas, no melhor sentido.

Outros tantos, como Paulo Bonfá, Marcelo Bianchi,  Paulinho Serra, Bento Ribeiro, Daniella Cicarelli, Edgard Piccoli, o pessoal do Hermes & Renato, Sara Oliveira, Marina Person, Soninha Francine, Cuca Lazarotto, Penélope Nova e Sabrina Parlatore fizeram história na emissora -e a história da emissora.

Mas o que mais doía na ideia de que esse acervo pudesse ficar sem a devida atenção de seus proprietários é que ali estão cenas antológicas de grandes encontros musicais ou entrevistas memoráveis, além das primeiras cenas de respeito à comunidade gay, até então ignorada nos muitos e muitos programas de namoro que a televisão brasileira já havia feito.

A MTV Brasil na era do Grupo Abril chegou a ser considerada a franquia mais notável do mundo, perdendo apenas para a MTV matriz, dos Estados Unidos. O VMB, ou Video Music Brasil, premiação anual dos melhores videoclipes, canções e discos, era um acontecimento igualmente fora da curva, bem organizado, com raríssimos erros (ao menos aos olhos do público). Tanto assim que virou notícia uma pane que interrompeu a apresentação de Caetano Veloso com David Byrne, em 2004, merecendo do baiano o famoso pito ao vivo: “Emetevê, bota essa porra pra funcionar!”.

De tão excepcional, o episódio inspirou o título do livro que Zico Goes, ex-diretor de programação e conteúdo do canal, lançou sobre suas memoráveis histórias e feitos por lá.

Há ainda os inestimáveis shows acústicos, com arranjos, canções e duetos nunca antes vistos e, em boa parte, que jamais se repetiriam. Lá estão Titãs, Rita Lee, Cássia Eller, Moraes Moreira, Lobão, Kid Abelha, Gilberto Gil, Legião Urbana, Ultraje a Rigor, Capital Inicial, Charlie Brown Jr., Zeca Pagodinho, Sandy & Júnior, Marcelo D2, Marcelo Nova, Jorge Ben Jor, Lulu Santos, o Rappa, Arnaldo Antunes e até Roberto Carlos, cujo show nunca foi exibido pela TV, por veto da Globo, dona do passe do rei na televisão.

A linguagem visual era igualmente fora de qualquer padrão e superava tudo o que se conhecia sobre grafismo de TV no Brasil.

Após o fim daquele canal, que funcionava no número 32 UHF e foi vendido pela Abril, a Viacom assumiu a sigla no Brasil, então como canal pago e uma proposta bastante diferente da velha MTV. O conceito se aproximou bem mais do tom pasteurizado, passando longe do teor  artesanal da primeira MTV.

Parte daquela receita de uma emissora segmentada que tantos talentos e ideias produziu para a TV de massa se perdeu com a ascensão do YouTube. Os jovens, afinal, já não tinham mais que aguardar pelos lançamentos ou rankings de videoclipes mais vistos em determinado horário.

Mas, se aquele formato já não poderia mais ser sustentado comercialmente, como foi por 23 anos, que ao menos a gente possa guardar a memória de um celeiro que inspira a TV até hoje.

É preciso dizer que enquanto esteve no edifício antes batizado como Victor Civita, no Sumaré, o acervo foi guardado e preservado com os devidos cuidados e profissionalismo de Valter Pascotto, que continua dando expediente no endereço e cuida das transmissões do canal 32 UHF, hoje controlado pelo Grupo Kalunga, com conteúdo locado para igrejas.

O prédio fica entre a torre de transmissão do SBT e a lendária pizzaria e lanchonete Real, onde uma das melhores festas de que participei na vida encerrou as transmissões ao vivo da velha MTV. O local até hoje recebe em suas mesas veteranos da Tupi, do SBT e da MTV, todos ex-vizinhos daquelas mesas e balcões, além do pessoal da ESPN Brasil, agora fundida com a FOX Sports. Fica bem ali o espaço onde nasceu a televisão no Brasil, a Tupi, cuja fundação completará 70 anos em setembro.

 

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Cristina Padiglione

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