Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘Amor e Sorte’ com as Fernandas é para guardar do lado esquerdo do peito

Antes que me acusem de esquerdinha, devo lembrar aos terraplanistas que a referência do título é pura e simplesmente ao órgão que rege o bombeamento do sangue a circular pelo corpo. Se há quem duvide que a Terra seja redonda, não estamos longe de contestações sobre a posição do coração no corpo humano.

Não que terraplanistas tenham o hábito de ler este blog ou qualquer coisa além de um título ou memes no zap, mas quem sabe o episódio de abertura de “Amor e Sorte”, nova série da Globo, lançada nesta terça-feira (8), não tenha o poder de aquietar os ânimos exaltados pelo negacionismo?

Quanta ternura há nos diálogos de Antonio Prata, Chico Mattoso, Jorge Furtado e Fernanda Torres, que assina com eles o episódio “Gilda e Lúcia”, interpretado por ela e pela mãe, Fernanda Montenegro. A história alcança uma condição ainda mais visceral quando vista por meio das duas. E surpreende pela genialidade de guardar em tão pouco tempo, coisa de 40 minutos, tantos conceitos e cacoetes entranhados nas relações humanas.

A mãe, 90 anos feitos, como sua intérprete, é levada contra a sua vontade pela filha para uma casa na serra. Frequentadora diária da praia, onde interage com amigos do quiosque onde consome sua caipirinha, ela não tem nem 15 minutos a perder naquele “meio do mato”, mesmo em meio a uma pandemia.

A mãe é esquerda carnívora, a filha, direita vegetariana. As duas trocam acusações ideológicas que são, aos olhos externos, algo quase folclórico, e daí divertido, não raivoso.

A mãe sugere que a filha cace um frango para comer um galetinho no almoço, e a filha, após alguma resistência, resolve se empenhar naquilo quase como um obstáculo a ser vencido, em cena antológica.

Quando a filha lhe diz que não vai torcer o pescocinho do bicho, a mãe pondera que a filha, executiva de alto posto em uma grande empresa, tem passado as últimas horas demitindo pessoas para manter seu precioso emprego em nome da saúde da firma.

“Você demite um bando de gente aí, com a maior facilidade, e na hora de apertar um pescocinho de um frango fica aí cheia de dedos, oh!”, diz Gilda.

“Olha aqui, eu demito pra salvar a empresa onde eu trabalho e pra manter emprego, dá pra entender, dona Gilda humanista, esquerda carnívora”, reage Lúcia.

“Liberalzinha vegetariana, direita guilhotina, você põe essa gente toda na rua pra salvar o teu emprego”, replica a mãe.

Segue daí uma discussão sobre plano de saúde x SUS. Texto cirúrgico, situação emblemática.

A mãe disse que criou a filha para que ela fosse independente dela, e implora para voltar ao Rio, dizendo que tem horror àquilo em que ela se transformou. Mas veremos que não é bem assim.

Entre uma faísca e outra, acendem fogueira à noite e lembram do dia em que a mãe levou a filha, ainda criança, a um acampamento que tinha como objetivo receber E.T.s que desceriam no ponto combinado com um grupo de amigos hippongos, mas os alienígenas não apareceram.

Tudo bem, são Fernandona e Fernandinha, dirigidas por Andrucha Waddington e cercadas por uma equipe que era quase toda da família em uma bela casa em Petrópolis (RJ), para uma série idealizada por Jorge Furtado para a pandemia. Tudo conspira a favor de um bom filme. Mesmo nessas circunstâncias, os diálogos crescem e aparecem como mérito à parte.

Quem acha que até bula de Aspirina ficaria incrível nas vozes das Fernandas é um otimista irremediável. Se as instruções medicinais de remédio tivessem a precisão, a concisão e a ternura deste roteiro, meu-deus, o mundo nem precisaria de Aspirina.

“Gilda e Lúcia” está disponível no Globoplay.

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Cristina Padiglione

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