Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Ao suspender humorístico, Globo reforça recesso da sátira política

Marcelo Adnet, em trajes militares, imita Jair Bolsonaro em paródia do seriado mexicano "Chaves"

Se há algo que parece ter ainda menos luz no fim do túnel do que a vacinação contra a Covid no Brasil é a produção de humor pela Globo. Poderíamos citar as demais emissoras abertas, mas o histórico do gênero na Record, na Band e no SBT, salvo o velho riso de costumes de “A Praça É Nossa”, não gera qualquer expectativa no sentido de rir do poder, como acontece com a trajetória da rede dos Marinhos desde os tempos da ditadura, quando a Censura, com letra maiúscula, tentava calar caricaturas e similares.

Esta semana, a direção da emissora avisou aos remanescentes do núcleo de humor que o “Novo Normal”, projeto criado por Antonio Prata, com direção de Henrique Sauer, estava indefinidamente suspenso. A previsão de estreia seria agosto, mas a Globo informou que a pandemia, mais uma vez, obrigará a empresa a rever seus planos.

De fato, contávamos com um plano de vacinação mais acelerado, mas as perspectivas para imunizar a população são pífias, atrasando toda a produção do audiovisual. Não é fácil gravar sob protocolos de segurança. Nem barato. Haja testes diários, máscaras e álcool em gel para elenco, câmeras, contrarregras, editores, figurinistas, eletricistas, faxineiros, diretores, etc.

No ano passado, a emissora conseguiu retomar o “Zorra” no segundo semestre, para depois anunciar seu último suspiro, como aconteceu com a temporada derradeira da “Escolinha”. Mal ou bem, devagar e quase sempre, a emissora vem gravando suas próximas novelas e séries, realizando programas diários e semanais da linha de shows, e até realities sem confinamento.

Por que apenas o humor é sacrificado em um momento em que se faz tão necessária a crítica política por meio do riso? Uma vez comprei aqui uma briga ao dizer que o humor na Globo fazia o que o seu jornalismo não ousava fazer. Quando Sergio Moro parecia figura inatingível para a narração dos fatos, o Zorra se encarregava de zombar do ex-juiz e compensar os cuidados que a emissora julgava necessários para a abordagem factual em relação aos áudios vazados da Operação Lava-jato.

Desde o início do governo de Jair Bolsonaro, o jornalismo da Globo é, na TV aberta comercial, o único capaz de confrontar os erros e suspeitas de corrupção e má gestão do poder público, mas a emissora não quer pagar um preço alto por isso. No momento, a Globo se esforça para não ser vista como antibolsonarista para os quase 30% de consumidores que ainda apoiam o presidente.

O governo federal ampliou as verbas publicitárias para Record e SBT, fielmente aliadas ao presidente, e subtraiu dinheiro do caixa da Globo, mesmo sabendo que ela fala com um público bem maior, que supera a soma da plateia das outras duas redes.

Não é só. Bolsonaro já ameaçou, por mais de uma ocasião, rever a concessão da Globo em 2022, seu último ano no poder antes de tentar a reeleição. E incentiva xingamentos à emissora, como se viu recentemente ao termo Globolixo proferido pelo ex-piloto e tricampeão mundial de Fórmula 1 Nelson Piquet em um evento ao lado do presidente.

Nesse contexto, a emissora não se curva e honra seu jornalismo. Faz o necessário para cobrar por uma gestão melhor, mas parece não ter pressa de cutucar o senso crítico do eleitor com elementos extras e de maior efeito para impactar o telespectador, como o riso.

A sátira política é, na maioria das vezes, mais eficiente que o jornalismo para ganhar os ouvidos do público. Do outro lado da tela, as pessoas estão racionalmente de guarda baixa, mais relaxadas e abertas às emoções trazidas pelo entretenimento.

Em 1973, auge do governo militar no Brasil, Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo) ria, pelo texto de Dias Gomes, dos coronéis que desfilavam na linha de frente do poder. Os homens fardados demoraram a perceber que Sucupira, afinal, não era tão fictícia nem tão pequena como parecia.

Antes disso, já em 1970, a Globo tinha Jô Soares, com “Faça Humor, Não Faça Guerra”, e Chico Anysio, criador de tantos tipos e capaz de abraçar o riso de costumes ou político, alcançando até uma convergência entre os dois estilos.

Chico Anysio como Justo Veríssimo / Divulgação

Em 1988, quando a nova Constituição rasgou as asas da censura de vez, a Globo colocou no ar o revolucionário “TV Pirata”, programa que abriria espaço para o humor do Casseta & Planeta, que ficou no ar pelas duas décadas seguintes, trafegando entre a caricatura de novelas e de presidentes da República.

Bussunda como Lula / Divulgação

Em 2014 veio o “Tá no Ar”, renovando com força a permissão para rir até de quem não era permitido na tela da Globo, incluindo a concorrência. O programa acabou em 2019, precocemente,  mas dando-nos a chance de ver enredos como a paródia de Bolsonaro invadindo o cenário do seriado “Chaves”.

Na ocasião, a direção da Globo alegou que os criadores do “Tá no Ar” –Marcius Melhem, Mauricio Farias e Marcelo Adnet– não queriam que o programa se desgastasse e criariam algo novo, projeto que já não contaria com Farias, envolvido em outros planos. Mas o sucessor, “Fora de Hora”, já chegou ao ar desanimado, sem graça, no início de 2020, e acabou de ser atropelado pela pandemia.

O “Fora de Hora” surgiu ainda sob uma série de restrições orçamentárias, com evidente redução de custos em relação ao seu antecessor, a começar pela existência de um único cenário. O “Tá no Ar” esbanjava uma edição frenética em que segundos de uma cena se alternavam com outras, de ângulos, atores e figurinos diferentes.

Houve também a crise de bastidores. Dani Calabresa, que inicialmente apresentaria o programa, mostrou-se insatisfeita com os rumos do projeto e do chefe, Melhem, denunciado por ela à direção da Globo por assédio moral e sexual, o que ele sempre negou.

A questão do assédio foi sufocada pela saída de Melhem da emissora, mas o problema de gastos surgiu de novo agora, não explicitamente, nos argumentos para a suspensão do “Novo Normal”. A Globo vem  cortando custos em todas as áreas, mas nenhum dos segmentos tradicionalmente merecedores de verbas se mostra tão esvaziado quanto o do humor.

Nesse ano que se passou, todos os setores da Globo conseguiram, de alguma forma, se reorganizar, exceto o do riso, item tão essencial para o momento que o país atravessa. A emissora recorreu ao acervo do “Vai que Cola”, produção que já teve nove temporadas no Multishow e é um sucesso de audiência, mas que não contempla a lacuna crítica deixada pelo “Tá no Ar”, programa que honrou e modernizou o histórico dos Cassetas, de Chico Anysio e Jô Soares ao longo das quatro décadas anteriores.

Enquanto a Globo trata esse riso como uma produção inviável para o momento, o Porta dos Fundos multiplica sua audiência na internet, com novos personagens, esquetes e plataformas. O próprio Adnet, ao lado da diretora Daniela Ocampo, animou o público com a série “Sinta-se em Casa”, repleta de sátiras políticas, com espaço fixo só no streaming do GloboPlay.

Na tela aberta de maior alcance do país, no entanto, é inegável o recesso sofrido pelo riso que faz pensar, um retrocesso para o histórico da Globo.

 

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Cristina Padiglione

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