Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Aquecimento do streaming impulsiona mercado editorial

Imagem do site Innovare Pesquisa / Divulgação

A produtora Boutique Filmes, dos irmãos Tiago e Gustavo Mello, em sociedade com Eduardo Piagge, assina pelo menos três lançamentos que em breve chegarão a plataformas de streaming, feitos, cada um, a partir das páginas de um livro: “Rota 66”, do jornalista Caco Barcellos, para a Globoplay, “O Médico que Virou Monstro”, de Patrícia Hargreaves, e a “A Casa das Sete Mulheres”, de Letícia Wierzchowski, que já teve, há 19 anos, uma versão em  minissérie na Globo.

Agora, a mesma Boutique adquiriu os direitos sobre “Véspera” (Ed. Record), sucesso de venda e crítica de Carla Madeira, e “Solitária” (Cia. das Letras), de Eliana Alves Crus, ambos já em fase de desenvolvimento para o streaming. Segundo Gustavo, são duas entre as várias apostas que a produtora tem feito na aquisição de direitos autorais de livros, antes mesmo que alguma empresa se interesse pela história.

“A aposta em direitos de livros é uma coisa para a qual a gente está totalmente voltado”, diz Gustavo ao blog. “É uma estratégia central nossa, porque quando falamos de obras ficicionais, o livro já traz um pensamento, uma obra artística robusta, sólida, de modo que a adaptação para o streaming já tem um DNA que pra gente é muito valioso, em vez de se criar uma série do zero, com diretor ou produtora. E aquela história já traz uma base de fãs que se relacionam com aquela obra por meio do livro.”

A Boutique não é caso isolado nessa corrida. Evidência do que tanto falam sobre um mercado aquecido em função do streaming, a concorrência pela aquisição de direitos sobre livros tem aumentado, segundo Gustavo, o que leva a produtora a abordar autores de sucesso antes mesmo que os títulos saiam no papel. Mas é claro que um bom produtor escolhe seus alvos de acordo com as temáticas mais demandadas pela industria.

“Eu tenho me aproximado dos autores quando eles ainda estão escrevendo, e daí tem a sensibilidade do produtor de saber o que é bom. A estratégia leva em conta a qualidade artística e a viabilidade daquele livro quando for para o mercado. A gente ficou mto fascinado com ‘Solitária’ porque é uma situação muito familiar de todo brasileiro, mas nunca contada por esse ponto de vista.”

Eliana confirma que foi procurara por uma representante da Boutique ainda quando escrevia “Solitária”, lançado em maio passado. A história retrata as relações entre duas mulheres negras, Eunice e Mabel, mãe e filha, e seus patrões, em um condomínio de luxo, onde trabalham e moram.

“Eu estava escrevendo ainda quando a Marina, que trabalhava com a Boutique, mandou mensagem, perguntando se eu estava preparando algo novo”, conta. Oformato já tinha uma pegada visual, ela lembra, com potencial para dialogar com o mundo do audiovisual.

Eliana tem quatro romances, um lançamento infantil e prepara novo livro para agosto, com 15 antologias de contos. Mas mantém boa experiência no universo do audiovisual, tendo participado de salas de roteiro em projetos para FOX, Globo e Paramount, onde se criou um núcleo de Narrativas Negras. Dentro do possível, a escritora pretende acompanhar a adaptação de seu livro para a tela, com algum desapego e já ciente de que as adaptações sempre sacrificam parte do formato original.

“Veja, temos 125 anos de ABL [Academia Brasileira de Letras] e da literatura que vira audiovisual, quantas mulheres escreveram? Quantas são acadêmicas? A possibilidade de a gente virar audiovisual ainda é muito recente”, diz Eliana, lamentando a demora da chegada feminina a esse universo, mas comemorando o que parece ser um ponto de mudança atualmente, especialmente para as mulheres negras. “.

“Eu estou bem feliz, até porque vai ser um desafio levar essas vozes para a tela. É bonito e representa a conquista de um novo público, de pessoas querendo se ver.”

“De cinco anos pra cá”, continua, “o cenário é muito diferente, especificamente de obras adaptadas para o audiovisual, um reflexo do nosso mercado editorial, de muitas coisas. Algo está mudando, pra mim mesmo, pra continuar escrevendo, porque tem toda uma questão de podermos viver daquilo.”

Já “Véspera”, de Carla Madeira, foi obra que chegou ao conhecimento de Gustavo em função do histórico da escritora. O produtor conta ter devorado o livro em dois dias. O enredo traz a personagem Vedina, uma mulher destroçada por um casamento conturbado. Em um momento de descontrole, ela abandona seu filho e, imediatamente arrependida, volta para o lugar onde o deixou e não encontra quaisquer vestígios de sua presença. 

“É uma historia potente e familiar que fala mutio sobre esses traumas e violências dentro da família”, endossa Gustavo.

Carla brinca com o nome da obra para dizer que está se “sentindo às véspera de um desejo que vai se realizar”. “Como uma criança que deixa o sapatinho na árvore de Natal e vai dormir sonhando em acordar.”

Assim como Eliana, Carla também acompanhará a adaptação “na medida em que a Boutique e equipe envolvida considerarem que posso contribuir”. “Vivi anos vendo cada cena escrita no livro, e imagino que minha contribuição é compartilhar essa vivência. Tenho o entendimento de que uma adaptação é uma outra criação artística. É preciso ter liberdade para trabalhar. Ao mesmo tempo, o desejo de contar a história que está no livro está movendo todo esse projeto.”

Será sua primeira incursão no mundo do audiovisual ficcional. Sua experiência, até aqui, com roteiros, foi na publicidade, segmento que foi berço de alguns de nossos melhores diretores, como Fernando Meirelles e Andrucha Waddington. “Há 35 anos sou diretora de criação da Lápis Raro, uma agência de publicidade, e já contei muitas histórias participando de todo o processo –roteiro, filmagens e pós-produção. Tenho bastante familiaridade com a linguagem.”

HISTÓRICO

Não é recente a política da Boutique de apostar em enredos antes mesmo de receber encomendas certas de canais ou plataformas. A série “3%”, primeira produção da Netflix no Brasil, também já obedecia a essa lógica. Os direitos sobre o enredo foram adquiridos pela produtora diretamente com seus criadores, que tinham uma versão primária daquele enredo publicada no YouTube. Um ano depois de negociar os direitos por aquela história, a Netflix comprou a ideia pelas mãos da Boutique.

“O streaming é um megafone para esses títulos, o alcance se amplifica enormemente no formato audiovisual. São narrativas poderosas, personagens fortes, histórias que revelam questões urgentes da sociedade brasileira, com potencial de alcançar um público amplo. Exige um trabalho artístico respeitoso para expandir universos e personagens e uma sensibilidade ao escolher os talentos certos do audiovisual para darem vida a essa histórias”, explica Gustavo Mello.

Além da série “Rota 66”, de Caco Barcellos, para a Globoplay, a Boutique tem em seu portfólio o documentário “PCC – Poder Secreto”, um dos títulos nacionais mais vistos da HBOMax deste ano, dirigida por Joel Zito Araújo, adaptação do livro “Irmãos: Uma história do PCC”, de Gabriel Feltran, e a série policial “O Negociador” pela Amazon Prime Video. Gustavo também esteve à frente do primeiro true crime da Netflix, “Elize Matsunaga – Era Uma Vez um Crime”. 

 

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Cristina Padiglione

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