Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Até quando a TV vai reservar aos negros uma espécie de cota?

Deborah Secco, Emílio Dants, Giovana Antonelli e Adriana Esteves: núcleo central de novela baiana e 100% branco

A próxima novela das nove da Globo, “Segundo Sol”, se passa na Bahia, estado onde cerca de 80% da população se declara preta ou parda. No núcleo central da trama de João Emanuel Carneiro, no entanto, brilham os branquíssimos Giovanna Antonelli, Emílio Dantas, Déborah Secco, Adriana Esteves, José de Abreu, Fabíula Nascimento e um mineiro que, criado na Bahia, faz parte dos outros 20% da população residente na Bahia, o branco Vladimir Brichta.

Faltam negros no núcleo principal, como acontece em toda novela. Quando um negro surge entre os personagens centrais, o fato vira notícia, como se deu com “Da Cor do Pecado”, do mesmo autor, em que Taís Araújo foi protagonista.

Na faixa das onze da noite, a Globo lançou “Onde Nascem os Fortes”, de George Moura e Sérgio Goldenberg. A história se passa na fictícia Sertão, mas o enredo deixa claro que estamos no Nordeste, próximo de Recife (PE). De novo, não há negros no elenco central.

O assunto ganhou destaque por meio de um texto de Maria Shu, dramatruga negra, que a atriz Samara Felippo repercutiu em seu perfil nas redes sociais.

Sempre foi assim, mas não é mais possível fingir que isso é normal. “O Bem Amado” era uma novela de brancos, e nunca ninguém duvidou que Sucupira tivesse um fictício Cep baiano. “Tieta”, do baiano Jorge Amado, tinha dois coadjuvantes afrodescendentes. Estando no Rio, em São Paulo ou no Nordeste, onde a presença de negros e descendentes é maior, novelas e séries fazem dos brancos sua grande maioria.

No Jornalismo, não é diferente, mas aí já não é um problema da TV – as redações de impressos e rádios, em geral, também são compostas por maciça maioria branca.

Poderiam até dizer que acontece na TV, com relação aos negros, o mesmo atraso de que eles são vítimas em qualquer outro ofício, fruto de dois séculos de escravidão no Brasil e da falta de políticas públicas que pudessem acelerar esse processo. Assim, temos poucos advogados negros, poucos economistas negros, poucos juízes negros, poucos jornalistas negros e poucos atores negros.

Mas…

Para cada Lázaro Ramos, a TV investe em 30 Rafael Vitti. Assim como um jovem negro inexperiente, os exemplares de brancos revelados a cada temporada de “Malhação” nem sempre vêm prontos, mas muitos são merecedores de novas oportunidades na TV e de algum investimento da indústria, o que se dá em proporção bem menor nas peles mais escuras. Por quê?

Seria razoável, à televisão, admitir que é o poder de consumo que manda na sua bolsa de apostas de talentos, e o consumo, neste país, ainda é dominado pelo poder aquisitivo dos brancos. O Kantar IBOPE Media só mede audiência em 15 regiões do Brasil, todas determinadas pelo poder de consumo. Mas os executivos da TV sempre tentam encontrar outras explicações para a falta de cor em seus elencos, argumentando justamente que faltam negros talentosos para ocupar tantos papéis.

Ora, repare só: se o talento artístico estivesse no mesmo compasso de atraso enfrentado pelos negros em outras profissões, como explicar sua presença de destaque na música, por exemplo, só para ficar no quesito “artístico”? Nem vamos falar da diferença que eles fazem no esporte. Parece claro que a dramaturgia não acompanha a avalanche de revelações e sucessos que os negros alcançam no repertório musical e mesmo em outros campos do entretenimento.

Nem a equipe do “Tá No Ar”, que fez um dos clipes mais fortes sobre o atraso imposto aos negros no Brasil (“Branco no Brasil: Há 500 anos levando vantagem), conseguiu honrar o próprio protesto. Cobrados da presença de negros ou descendentes em cena, os humoristas justificaram, no início da temporada mais recente, que não encontraram talentos à altura do estilo do programa. Será possível? Será, mas se a gente continuar a se conformar que a coisa é assim e sempre foi assim, daqui a dez anos teremos a mesma meia dúzia de talentos afrodescendentes que estão na TV não por sua cor, mas por seu talento.

Evidentemente, não se pode trabalhar uma escalação de elenco com critérios de cotas. Mas que falta disposição da TV em encontrar negros e pardos, isso falta. A moda já faz mais que a TV nesse terreno. A música, como cá foi dito, nem se fala. Se eles podem atrair multidões em outras áreas, por que não atrairiam diante das câmeras? Por trás das câmeras, a coisa não é diferente, e também há uma movimentação para ampliar o espaço a negros entre diretores e roteiristas – a própria Ancine tem feito um levantamento anual chamando a atenção para a baixa frequência de mulheres e negros no audiovisual.

Quando foi filmar “Cidade de Deus”, a O2 Filmes foi buscar seus “atores”, nem todos tão prontos assim para o ofício, entre o pessoal do Nós do Morro, núcleo de artes dramáticas nascido entre moradores de favelas. A partir disso, Leandro Firmino, Alexandre Rodrigues, Douglas Silva,  e outros atores passaram pela rigorosa preparação de Fátima Toledo e tornaram o filme um enredo crível. Imagine contar aquela história sem negros?

E não vale a TV justificar que há merchandisings sociais frequentes chamando atenção para o caso nas novelas e séries, reservando o assunto a “Mr. Brau”, “Cidade dos Homens”, à moça do tempo do “Jornal Nacional” ou ao apresentador do “Jornal das Dez”, na GloboNews..

Enquanto a soberania branca se fizer visível na TV em níveis tão desproporcionais, a coisa vai mal.

 

Acrescento aqui, às 16h40 da segunda-feira a resposta da Globo ao jornalista Mauricio Stycer sobre as críticas recebidas à falta de diversidade da novela. A direção da Globo respondeu que a escalação de elenco obedece a critérios de talento, e nem dissemos aqui o contrário. Ressalto justamente a falta de disposição em investir em talentos de outras cores e mudar um cenário que a gente sempre achou normal, equivocadamente.

Leia: Globo rejeita Globo rejeita critério de representatividade racial na escalação de elenco

 

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Cristina Padiglione

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