Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Autor de ‘Segundo Sol’ reconhece que faltavam negros na novela baiana: ‘Foi uma lição pra mim’

Autor da novela “Segundo Sol” (2018), João Emanuel Carneiro reconhece a legitimidade das cobranças sofridas na ocasião em relação à falta de atores negros no núcleo central da história, inclusive pelo Ministério Público do Trabalho. “A gente está aprendendo, está certo, tem que fazer novelas com mais atores negros. Nesse evento, eu aprendi”, disse ele a Pedro Bial em entrevista que a Globo exibiu na sexta-feria (16), no Conversa com Bial. “Foi uma lição para mim.”

Não era a primeira vez que a emissora fazia novelas na Bahia com elenco majoritariamente branco, ao contrário. Isso era uma constante nos enredos nordestinos do acervo da casa. Mas, só então, na esteira de movimentos antirracistas bem mais tímidos que hoje, ainda estabelecendo cotas no sistema de ensino, passamos a nos perguntar por que a Bahia, sendo de maioria negra, não era representada como tal em um folhetim, algo que não ocorreu em “Gabriela”, “Pedra Sobre Pedra”, “Tieta”, “Porto dos Milagres”, só para citar alguns dos folhetins baianos no histórico da casa.

De lá para cá, a Globo passou a se empenhar na aposta sobre mais rostos negros e há visivelmente uma preocupação, antes ausente, de multiplicar as cores diante e por trás das câmeras, onde primeiro se reflete essa acomodação de branquitude. As novelas passaram não só a colorir seus núcleos centrais, mas também a promover a formação de casais inter-raciais.

Só em “Amor de Mãe”, de Manuela Dias”, temos Taís Araújo e Murilo Benício, e Jéssica Ellen e Chay Suede. Em “Bom Sucesso”, Grazi Massafera fazia par com David Júnior, que agora é um dos dois atores inseridos no elenco de “Sob Pressão”, dando aos pretos uma representatividade na profissão que exige os mais exaustivos estudos, no caso, a medicina. O segundo nome que a série ganhou também vai nessa linha, com Roberta Rodrigues no papel de enfermeira.

Voltando à entrevista de João Emanuel, o autor de “Da Cor do Pecado”, “Cobras e Lagartos”, “A Favorita” e “A Regra do Jogo”, mas sobretudo referendado como o criador do grande fenômeno desta década, “Avenida Brasil ” (2012) , escreve agora uma novela que pode ficar para 2021 ou 2022. Na entrevista, ainda na sexta, ele mencionou que será para 22, mas essa previsão estaria ainda condicionada à produção do remake de “Pantanal” para o ano que vem, plano ainda incerto, em razão da pandemia e do estrago causado à região pelas queimadas recordes.

“Olho por Olho”, título provisório da trama, já prenuncia seu argumento, de novo centrado em vingança. “É sobre um ajuste de contas de uma família, vingança, coisas de folhetim clássico.” A protagonista, Letícia Colin, que foi peça-chave em “Segundo Sol”, será cega, e terá uma mãe malvada, vivida por Glória Pires.

“Sempre me interessei muito pelo tema da cegueira, a questão de que percepção uma pessoa cega tem da realidade e de que forma isso pode ser mostrado na ficção, é um desafio novo pra mim”, conta.

Recheada de dicas sobre o ofício de escrever para cinema e TV, a entrevista merece ser vista especialmente por roteiristas e aspirantes ao ofício.

Bial cita que a mãe de Carneiro, Lélia Coelho Frota,  foi “poeta das grandes” e ganhou um Prêmio Jabuti em 1979 pelo livro “Menino Deitado em Alfa”, que, no caso, era o próprio autor. “Minha mãe era meio contra televisão, que era intelectual e não gostava de televisão, mas eu assistia [novelas] escondido, muita novela. no quarto de empregada, então, muito”, admitiu o autor, que a seguir fez uma revelação surpreendente:

“Minha mãe passou a vida lendo e eu odiava, tinha ciúmes dos livros, e muitas vezes eu cheguei a pegar os livros dela e queimar, sem que ela visse, porque ela passava o dia lendo, eu tinha ódio dos livros, inclusive”.

Roteirista de “Central do Brasil”, ao lado e Marcos Bernstein, Carneiro disse que perdeu o encanto pela festa do Oscar ao presenciar a cerimônia de 1999, edição em que a produção concorreu como melhor filme estrangeiro, perdendo para “A Vida É Bela”, do italiano Roberto Benini, e Fernanda Montenegro foi uma das cinco finalistas a melhor atriz, tento perdido para a opção mais fraca daquele ano, Gwyneth Paltrow (“Shakespeare Apaixonado”). “Aquele local parece muito maior pela TV”, disse.

Sobre as produções em capítulos que o sugaram para a TV, deu boas definições e sugestões:

“A novela oferece uma coisa quase lisérgica, que é de você sair na rua e estar todo mundo comentando”.

Confessa que chega a usar em suas histórias algumas das tantas invenções criadas pelas revistas que vivem de novelas. Entre as pistas falsas das publicações, há dicas de bons ganchos, um sequestro ou algo nessa linha, que ele aproveita em cena.

Voltou a atribuir a Adriana Esteves boa parte do mérito de “Avenida Brasil” e afirmou que Foguinho, o ani-herói de Lázaro Ramos em “Cobras e Lagartos”, era um Macunaíma, referência ao clássico de Mário de Andrade.

Avenida Brasil e A Favorita

Sobre a próxima novela, já tem 20 de 180 capítulos prontos: “É um oceano tão grande de capítulos e histórias, que eu já imagino o que vai acontecer no capítulo 40, 100, pra não nadar cachorrinho numa piscina sem fim. Eu sabia, na ‘Avenida Brasil’, que Nina (Débora Falabella) ia humilhar Carminha no capítulo 100. Eu me agarrei a isso, fui criando balizadores antes pra guardar isso pro capítulo 100.”

“No fundo, nas minhas histórias, eu guardo os grandes ganchos e viradas mais pro final, e eu crio fogos de artificio antes, as pessoas acham que tá acontecendo alguma coisa, mas são fogos de artifício. O Tufão (Murilo Benício) só descobre que Carminha o traiu no capítulo 130, 140, eu acho.,

“Cento e trinta capítulos deste homem corno é difícil de fazer, mérito incrível do Murilo Benício, que não fazia nada, só era corneado por 130 capítulos, e ele ficou em cena maravilhosamente, sem ação nenhuma,”

A Favorita é a novela que eu mais gosto, foi o brinquedo mais doido que eu já fiz pra mim, uma novela arriscada, meio experimental, você não sabia quem estava dizendo a verdade, se era heroína ou vilã, Flora e Donatela. Uma era pobre, e outra que era rica e aparentemente errada, e no fundo, quem estava falando a verdade era a rica. Invertou completamente o arquétipo comum das novelas, e eu me lembro que eu recebia cartas dizendo que as telespectadoras estavam em depressão, sem dormir. Ter provocado as pessoas foi uma coisa ousada e desafiante.”

Ficção desafiada pela realidade

Quando Bial descreve a história da deputada Flordelis (PSD-RJ), acusada de matar o marido, o pastor Anderson do Carmo, com quem tinha muitos filhos adotados, e entre eles, até ex-namorado, Carneiro reconheceu que Dostoievski nenhum teria o alcance de criar ficção tão inimaginável. “A gente tá vivendo essa realidade no Brasil, é muito além de todos os ficcionistas, ainda mais no Rio de Janeiro, fazer ficção aqui está puxado. Coitada da Carminha, Carminha é quase uma freira perto dessa daí, Carminha só maltratou uma criança e matou um amante só”, disse o dramaturgo.

Carneiro falou que o ato de escrever novela, ainda que em casa, pede alguma solenidade. “Tenho que botar uma roupa, não pode ser um pijama, senão não consigo me levar a sério. E com sapatos, não pode ser chinelo”.

Como já ouvi de outros autores, o expediente intensivo de quem cria de 150 a 200 capítulos para exibição diária provoca um involuntário diálogo entre criaturas e criador, e aqueles personagens passam a falar no seu ouvido, sendo essencial saber escutar o que dizerm. Quando uma novela acaba, vêm “alívio e tristeza, um luto curioso: onde foram parar aquelas 40 pessoas que falavam no meu ouvido?”.

 

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