Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Autor lembra pressão da Globo para reprimir bigamia da mocinha em ‘Sonho Meu’

Patrícia França e Leonardo Vieira em 'Sonho Meu' / Reprodução

A volta à TV de “Sonho Meu”, novela de Marcílio Moraes exibida originalmente pela Globo em 1993 e 94, agora pelo canal Viva, trouxe à tona uma manifestação do autor sobre a pressão feita pela direção da emissora na época da produção. Por meio das redes sociais, Moraes disse que se viu constrangido a ceder a “cartas de telespectadores” chocados com uma mocinha bígama, vivida então por Patrícia França.

Interessada no tema, procurei por ele, a fim de obter mais detalhes sobre esse episódio. Ao lembrar o caso, o autor nos convida a ótimas reflexões sobre o enredo de sua história e os bastidores da produção. As tais cartas, que ele ressalta que nunca teve a chance de ler e nem mesmo de saber quantas seriam, e a pressão da emissora, teriam ocorrido se a personagem fosse homem?

Há ainda outras questões relevantes em jogo e algumas delas valem para mensurar até que ponto a gritaria de uma minoria é capaz de afetar a produção artística de uma indústria que vive da arte, embora trate isso como mercadoria.

Na era da pré-história das redes sociais, esse termômetro era ainda mais complexo: quantas cartas seriam relevantes, em meio ao gigantesco montante de público que faz a audiência de uma TV Globo (lembrando que em 93, a Globo era ainda mais majoritária que hoje como opção de entrenimento da massa) para convencer a direção da empresa a inibir um autor que se mostra bem-sucedido junto aos números do então Ibope?

Quando a própria chefia da casa se sente incomodada com os rumos da história, bastam meia dúzia de senhoras a assinar uma carta só para justificar o recuo no assunto.

Isso me faz lembrar o caso das lendárias Senhoras de Santana, um grupo de senhoras do bairro da zona norte de São Paulo, que um dia escreveu uma única carta ao presidente João Figueiredo, último mandatário do regime militar no Brasil (entre 1979 e 1985), e passou a servir como bode expiatório para vários atos de censura impostos pelo governo e pelos próprios donos de rádio e TV a partir dali. Mas deixo esse assunto para um outro post.

Troquei algumas mensagens com Marcílio em função desse episódio específico de “Sonho Meu”. Vamos primeiro aos fatos por ele relatados:

“Qual o dever ético da mulher que ama?
Tem uma questão em ‘Sonho Meu’ que eu gostaria de pôr em debate, aproveitando a reestreia. Por favor, vejam:
Moça de origem humilde, Cláudia, a protagonista, encanta o dono da fábrica em que trabalha, se apaixona e casa com ele, sem revelar que já era casada. Por sofrer violência doméstica, ela tinha fugido do marido e se perdido da filha. O maridão brutamontes reaparece, e ela, para proteger a filha e a si própria, sustenta a bigamia, enganando tanto o cônjuge vilão quanto o mocinho amado. Esta era a situação dramática planejada para a novela, numa certa etapa.
Pois bem, quando a trama chegou nesse ponto, fui informado que a direção da emissora estava em polvorosa, que a audiência perigava cair por causa da reação do público que não admitia o fato da protagonista ‘enganar o homem que ama’ (sic). Teriam recebido cartas (quantas?) com estes argumentos. A pressão foi enorme para que eu desse fim imediato naquele imbróglio. Fui constrangido a ceder e dar uma solução abrupta e não muito verossímil à trama.
28 anos depois, pergunto que postura teriam os movimentos de proteção à mulher sobre esta situação? Cláudia, minha personagem, tinha mesmo o dever ético de revelar ao marido, que ama e que a faz feliz, uma verdade que acabaria com a felicidade dos dois e poria em risco a ela e sua filha, além do próprio bom marido, que se veria sujeito à violência do mau?
Porque, se na ficção, não foi difícil livrar a cara da protagonista, na vida real, ela estaria frita. Basta acompanhar as estatísticas de feminicídio no Brasil. Minha personagem não era uma “young lady” da Jane Austen, era uma mulher brasileira do povo, que não vivia de abstrações. O que nos traz a questão de gênero, se o personagem fosse homem, o pretenso público mandaria cartas alegando que ele não podia ‘enganar a mulher que ama’?
Como autor, eu resolveria dramaticamente o conflito com toda a tranquilidade, ao longo da novela, tinha isso pensado, claro, não carecia da interferência de diretores acuados por um bando de carolas, se é que tal bando tinha de fato existência concreta.
Então, deixo a pergunta: qual o dever ético da mulher que ama? Contar a verdade para o amado, em qualquer circunstância, ainda que lhe custe a vida?”

Ao pedir mais detalhes sobre o episódio ao autor, Moraes lembra que sabia bem o terreno onde estava pisando e tinha noção do que faria na história: “Um dos desafios dramáticos mais importantes que me propus enfrentar em ‘Sonho Meu’ foi exatamente ter uma protagonista mulher que, em virtude de circunstâncias, se torna bígama. Era uma novela das seis. Eu tinha perfeita consciência de que tal situação era inaceitável pelo público”.”Tudo dependeria de não perder a identificação do espectador com a personagem. E isto foi conseguido, tanto que a novela tinha audiência altíssima. No melodrama, se você mantém a identificação do público, pode fazer o que quiser.”Verdade, digo eu.

“O público conhecia perfeitamente os motivos elevados que moviam a personagem e acompanhava suas aflições e movimentos para construir uma ética pessoal que desse conta da situação e permitisse superar o impasse.

E aí está a diferença. Se você julga a história com princípios morais abstratos –a mulher não deve mentir para o marido, por exemplo–, sem mergulhar nas circunstâncias, vai ter opiniões acríticas, preconceituosas e cheias de ódio. O que eu queria, e consegui, era que o público apreciasse o conflito sem preconceitos, percebendo como a personagem se via obrigada a criar uma ética pessoal para sair da encrenca. Nem eu, como autor, nem o púiblico, nem a personagem precisávamos da intervenção de salvadores da moral para resolver o nó dramático que estava posto”, reforça Moraes.

O dramaturgo vai além, e de novo devo concordar com sua reflexão, ao dizer que “a prevalência dessa visão tacanha no audiovisual brasileiro, com a influência massiva que este tem sobre a população, a meu ver, participa da responsabilidade pela situação política, social e cultural que vivemos”.

“Sem estimular a visão crítica do público, nunca vamos sair das polarizações estúpidas que nos deixam para trás há décadas.”

Autor de “Roda de Fogo”, atualmente no ar no GloboPlay, Marcílio esteve na equipe de “Roque Santeiro”, escreveu “Mandala”, “Mico Preto” e o remake de “Irmãos Coragem”, além das minisséries “Laércio é Nosso Rei”, “Noivas de Copacabana”, “Dona Flor e Seus Dois Maridos” e “Chiquinha Gonzaga”, e especiais como “A Grande Família”, “O Dia Mais Quente do Ano” e “Aventuras de um Barnabé”.

No final de 2002, saiu da Globo e lançou seu primeiro romance, “O Crime na Gávea”, pela editora 7 Letras (2003), atualmente em produção para um longa-metragem. Foi eleito presidente da Associação dos Roteiristas, cargo que ocupou até 2010.

Em 2005, foi contratado pela Record, onde escreveu as novelas “Essas Mulheres”, “Vidas Opostas” e “Ribeirão do Tempo”, além dos seriados “A Lei e o Crime”, em 2009, e “Fora de Controle”, em 2011.

Embora tenha sido anunciada como um mix de duas novelas antigas de Teixeira Filho –“A Pequena Órfã” e “Ídolo de Pano”, Marcílio uniu as duas ao transformar a mãe da pequena órfã na mulher que os dois irmãos de “Ídolos de Pano” disputam. A partir desses personagens, o autor criei uma nova novela.

Marcílio volta à questão inicial e explica: “A pergunta que fiz é retórica de novela, claro. Ninguém anda por aí questionando a ética da mulher que ama, a não ser personagens e espectadores de novelas.” “No caso”, continha, “a moça de origem humilde ganha as graças de um ricaço e casa com ele, sem revelar que carrega um passado sombrio, nada menos que um marido violento, um bandido, e uma filha. Contar a verdade para o bacana seria o mesmo que a Cinderela dizer para o príncipe que era casada com um ogro e tinha uma filha. O que diria o maridão, na vida real brasileira? Nem precisa responder. Por isto, a minha personagem omite o passado e, quando o pilantra aparece, tenta segurar a situação até encontrar uma saída. Criou uma ética particular para, ao mesmo tempo, ser fiel ao amor e safar-se da destruição.”

Na sua percepção, os espectadores, e especialmente as espectadoras, aceitavam isso perfeitamente.

“Alguns idiotas com poder é que acharam que eu estava ultrajando a família brasileira. Em suma, a meu ver, a ética é uma construção particular, diferente da moral, que é abstrata e se refere ao todo. Talvez o velho Aristóteles não concordasse comigo”. finaliza.

…………………..Ficha técnica

“Sonho Meu” voltou ao ar nesta segunda-feira (12) pelo canal Viva, com exibição diária em duas faixas, às 12h30 e à 1h15. Leonardo Vieira faz o bom moço que faz da personagem de Patrícia França uma bígama, e José de Abreu vive o carrasco que a obriga a mentir.

Marcílio contou com a colaboração de Margareth Boury e Maria Adelaide Amaral no texto, tendo Lauro César Muniz como supervisor neste trabalho. Naquela época, a Globo ainda era chefiada por José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, e tinha Mário Lúcio Vaz como diretor da Central Globo de Produção, a quem a dramaturgia se reportava diretamente.

 

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Cristina Padiglione

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