Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Beatriz Segall lutou em vão contra fama póstuma de Odete Roitman

Atriz de mais de 25 trabalhos na TV, dezenas de montagens teatrais e dez filmes, Beatriz Segall detestava ser reconhecida pelo rótulo único de “Odete Roitman”. A personagem de “Vale Tudo”, novela escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, superou a fama da atriz, o que era, no fundo, um mérito de sua intérprete. Mas ela não aceitava que toda uma carreira fosse reduzida a um personagem.

Fato é que a morte de Odete Roitman foi de uma comoção só alcançada por Salomão Hayala (Dionízio Azevedo) em “O Astro”, de Janete Clair. Embora todo folhetim se esmere em criar um suspense na linha “quem matou?” – e o próprio Gilberto Braga repete esse recurso em toda novela sua, desde então – ninguém supera o efeito gerado por dona Odete e seu Salomão.

Como Odete Roitman, novamente no ar atualmente

Beatriz não era a primeira opção para o papel. Antes dela, havia sido cogitado o nome de Odete Lara, amiga de Gilberto Braga. “Mas a Odete não quis. Ela é como eu, não gosta de trabalhar”, contou-me Gilberto em uma entrevista realizada em 2014, em sua casa.

No processo de pré-produção de “Vale Tudo”, novela que acaba de completar 30 anos e está em reprise no canal Viva, o então diretor Paulo Ubiratan lia os nomes dos personagens e seus respectivos intérpretes em uma reunião com autores e diretores. Quando chegou ao nome de “Odete Roitman”, ainda sem escalação, olhou ao seu redor e sugeriu aos demais: “Beatriz Segall?” “Achamos ótimo. Mas o Daniel Filho não queria, achava que a Beatriz não faria bem o papel e mesmo depois ele não admitiu: dizia que todo aquele sucesso era porque a personagem era boa, não por mérito da Beatriz”, lembrou Gilberto.

O autor sempre faz questão de dizer que Odete morreu a apenas 12 capítulos do fim da trama, mas a discussão em torno do assunto foi muito mais longa, pois a imprensa, tendo descoberto que a vilã morreria perto do fim, passou a abordar o tema com frequência.

“O que aconteceu foi que a novela fazia tanto sucesso que começaram a perguntar ‘quem matou Odete Roitman?’ muito antes de a personagem morrer. Os jornalistas sabiam que ela ia morrer e começaram a publicar. Eu ficava chocado. E me lembrava da frase atribuída ao De Gaulle – ‘Não é um país sério’ – porque, na primeira página, os jornais falavam do assassinato de Odete Roitman como se fosse um crime de verdade”, disse Gilberto em entrevista ao livro “Autores – Histórias da Teledramaturgia”, lançado pelo projeto Memória Globo.

A megera mantinha um caso com César (Carlos Alberto Ricelli), no melhor estilo cafajeste cobiçado, reforçando a polêmica inevitavelmente gerada por romances entre mulheres ricas mais velhas e rapazes bem mais jovens, bonitões. Odete tinha boa parcela de culpa no alcoolismo da filha, Heleninha (personagem antológico de Renata Sorrah) e tentava conduzir os passos do filho, Afonso (Cássio Gabus), o que acabava por colocar o herdeiro nos braços de alguém bem pior que ela, a desalmada Maria de Fátima Acioli (Glória Pires).

Beatriz era sem dúvida atriz de todas as nuances, mas a formação e o histórico daquela mulher refinada levavam os diretores a escalar seu nome quase sempre para papéis de ricas ou ricas em decadência. Foi Lourdes Mesquita em “Água Viva” (1980), Celina em “Dancin’Days” (1978), Norah Brandão em “Pai Herói” (1979), Laura em “Sol de Verão” (1982), Alzira em “Carmen (1987), Stella em “De Corpo e Alma” (1992), Paula em “Sonho Meu” (1993), Clotilde Jordão em “Anjo Mau” (1997), Bárbara em “Bicho do Mato” (2006) e Maria Beatriz em “Lara com Z”.

Fez apenas três personagens pobres em toda a sua trajetória (corrijo aqui a informação anterior, que lhe atribuía apenas um tipo de baixa renda, graças ao expert no assunto Nilson Xavier): Eunice em “Champagne” (Globo,1983), mãe de Lucia Verissimo, casada com Luis Carlos Arutin; foi Iracema em “Os Adolescentes” (Band, 1981), uma costureira; e Alzira em “Carmem” (Manchete, 1987), mãe da protagonista (Lucélia Santos). Em “Barriga de Aluguel” (Globo, 1990), foi Miss Penélope, que não era pobre, mas passava longe do estilo ostentação, contracenando com Mário Lago.

Seu último trabalho na TV foi “O Assalto”, episódio com roteiro de Antonio Prata, cronista da Folha, e direção de Fernando Meirelles, da bela série “Os Experientes” (2015), indicada ao Emmy Internacional. Na história, Beatriz é feita refém em um assalto e acabava por confundir o jovem assaltante ao relatar que ela também já assaltara um banco na juventude, mas por razões políticas.

A atriz tinha conhecimento sobre esse universo. Seu marido, Maurício Segall, foi membro da Aliança Libertadora Nacional (ALN) e chegou a ser preso e torturado – embora não fosse exatamente da luta armada, era da base de apoio ao movimento, em oposição ao regime militar que governou o Brasil entre 1064 e 1985, e ficou um ano preso, no início da década de 1970.

Com o diretor Fernando Meirelles na premiada ‘Os Experientes’, seu último trabalho na TV

Não foi à toa que Beatriz se tornou atriz cobiçada para personagens abastados. Filha do diretor do prestigiado Instituto Lafayette, uma escola na Tijuca, zona norte do Rio, ela honrava o histórico de uma  educação primorosa para os padrões da época – aprendeu francês, piano e costura. O pai não fazia gosto na profissão de atriz, e ela adiou um pouco sua trajetória, cumprindo uma temporada como professora de francês.

Ao ganhar uma bolsa para estudar literatura e teatro em Paris, no entanto, ela deixou o cargo de professora para aproveitar a chance. Foi na França que conheceu Maurício Segall, filho do pintor judeu lituano Lasar Segall e da tradutora Jenny Klabin, com quem teve três filhos. Museólogo, economista, dramaturgo e poeta, Maurício era formado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e foi estudar administração pública em Paris entre 1952 e 1953. Morreu em julho do ano passado.

Beatriz sai de cena aos 92 anos, justo no momento em que Odete Roitman mais uma vez comanda a massa, por meio da segunda reprise de “Vale Tudo” no canal Viva, de novo gerando audiência e eco nas redes sociais.

Não é coincidência.

No momento dessa despedida, é Odete quem eterniza Beatriz, graças ao talento da própria Beatriz Toledo Segall em mexer de modo tão intenso com a imaginação de tanta gente, amém.

Abaixo, o link para “O Assalto”, último trabalho na TV:

https://globoplay.globo.com/v/4102475/programa/

 

 

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Cristina Padiglione

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