Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Beijo gay em ‘Um Lugar ao Sol’ promove rendenção de feminista conservadora

Natália Lage e Mariana Lima em cena de Gabriela e Ilana na novela 'Um Lugar ao Sol' / Reprodução

O tão anunciado enlace sexual das duas amigas de “Um Lugar ao Sol”, novela de Lícia Manzo na Globo, finalmente aconteceu no capítulo deste sábado (5), a menos de um mês para o fim da história.

Ilana, personagem de Mariana Lima, mulher que se reconhece feminista e é aparentemente progressista, demorou a perceber que fugia da melhor amiga de adolescência, Gabriela (Natália Lage), pelo fato de ela ser gay e de se sentir atraída por ela.

Antes que isso pudesse acontecer, o público acompanhou alguns diálogos em que o conservadorismo da falsa moderninha foi atiçado pela amiga e prima Rebeca (Andréa Beltrão). Em uma dessas conversas, ficou evidente a interferência da educação vinda do pai de Ilana, alguém super conservador, na resistência que ela apresentava à amiga gay.

Mas não é que Ilana seja uma falsa progressista conscientemente, e esse é seu grande conflito. É uma prestação de serviço imensa a apresentação de uma personagem como esta, aparentemente sem preconceito algum com o mundo, mas cheia de amarras consigo. Ela é aquele sujeito muito comum, que diz não ter nada contra homossexuais ou trans, já que está rodeado de amigos que assim o são, mas não admite a hipótese de se envolver com algum deles.

Ilana é dona de uma agência de modelos, trabalha com propaganda, setor que tem se esforçado para corrigir a segregação de décadas impostas a gêneros e cores, segmento que por muito tempo privilegiou loiros de olhos claros héteros. É de bom tom, como diria a adorável Keila Mellman, personagem da xará de Ilana, a Kaplan, no Instagram, que Lícia tenha trazido à tona mais um beijo gay na novela das nove da Globo por meio de uma figura como esta, capaz de gerar identificação em tantas mulheres e homensa da vida real que vestem couraça progressista para não enxergarem seus desejos ocultos.

“Ah, mas ainda hoje estamos tratando beijo gay de novela da Globo como tabu?”, dirão alguns. Tabu não, mas enquanto essa manifestação for de uma para cada cem beijos héteros, o desequilíbrio há de justificar que o assunto seja colocado em pauta, sim.

A cena que rompeu esse veto, e a censura vinha da própria direção da Globo, temerosa quanto à reação de um público que engloba muita gente conservadora, foi o desfecho entre Mateus Solano e Thiago Fragoso, em “Amor à Vida” (2013). Àquela altura, diferentemente de 2005, quando uma cena gravada entre Erom Cordeiro e Bruno Gagliasso foi jogada no lixo em “América”, a emissora já percebia que o ônus de continuar evitando beijos gays em novelas exibidas na faixa nobre poderia ser maior do que o risco de colocar a diversidade na tela.

Ainda em 2003, Alinne Moraes e Paula Picareli trocaram um discretíssimo selinho em “Mulheres Apaixonadas”, mas sob o pretexto de uma cena em que representavam uma encenação teatral.

A necessidade de ampliar o pluralismo tem ganhado cada vez mais holofotes na TV, e esse movimento tem sido puxado em boa parte pelo mercado publicitário, que dá as regras sobre a valorização do consumo. Mas ainda estamos longe de um equilíbrio.

É evidente também que uma personagem como Ilana não haveria de discutir sua paixão pela amiga de uma forma não binária, mas esse já é um passo adiante. O fato de ter passado tanto tempo casada com homem e de agora estar encantada por uma mulher não a coloca no dilema de ser ou não ser gay.

Aquele personagem do Hubert do Casseta & Planeta, que vivia a circular em saunas e fazia chacota com estereótipos para sempre finalizar com o bordão “mas eu não sou gay”, talvez fosse muito mal compreendido como piada hoje, quando as novas gerações têm se permitido desejar meninos e meninas sem se preocupar com limites de orientação, propriamente dito.

Por fim, recomenda-se à Ilana da novela, e também a Rebeca, que se acha muito moderna mas se autocensura violentamente com a questão etária, que elas acompanhem o podcast “Prazer, Renata”, de Renata Ceribelli, disponível nas principais plataformas digitais, de Spotify a GloboPlay, de Deezer a Amazon e Apple. As conversas e entrevistas ali apresentadas no prazo de menos de um ano são aulas e terapia preciosas para as mulheres de modo geral e, em especial, para as ditas “de outra geração”, como mencionam Rebeca e Ilana na novela, na qual também esta blogueira se enquadra.

Obrigada, Renata.

Obrigada, Lícia.

Obrigada a Mariana, Natália, Andréa, Marieta (Severo), Marco (Ricca), Gabriel (Leone), Daniel (Dantas), Denise (Fraga), Regina (Braga) e demais atrizes e atores que nos conduzem a reflexões tão relevantes por meio de uma obra que alcança tanta gente.

E obrigada à direção, via Maurício Farias, maestro do folhetim, e Clara Kutner, que de novo expôs o olhar feminino por meio da direção de uma cena capaz de traduzir a alma feminina.

 

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Cristina Padiglione

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