Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Bozo e Xuxa reinaram num tempo em que ninguém enxergava ‘erotização’ na programação infantil

Vladimir Brichta como Bingo, que hoje seria um palhaço politicamente incorreto.

Talvez Xuxa só tenha sido poupada porque Facebook e Twitter ainda não existissem nos seus tempos de reinado infantil, mas houve um momento em que começaram a debater sobre o comprimento de suas saias e shorts, e logo ela seria apontada como fator capaz de erotizar precocemente a criançada: meninas querendo ser mulher antes da hora e meninos encantados, para dizer o mínimo, com aquela Rainha. Eu mesma comunguei dessa opinião por anos a fio, até encontrar uma especialista em cuidados com crianças em uma banca de TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) na Faculdade Cásper Líbero. Não lembro seu nome, falha terrível, não registrei. Mas lembro até hoje do que ela me disse diante dessa suspeita: autora de livros, pesquisadora sobre mídia e criança, jurou-me de pés juntos que jamais se encontrou qualquer indício de que as crianças vissem a loira dessa forma. “Essa malícia está na cabeça dos adultos, as crianças nunca foram afetadas sexualmente por quererem ser como ela”, disse-me.

Lembrei-me disso entre ontem e hoje porque, além de toda essa questão sobre a menina que tocou o artista nu na exposição do MAM, alvo de protestos e debates acalorados, fui ver, tardiamente, o belo “Bingo”, filme indicado pelo Brasil para concorrer a uma vaga entre os finalistas ao Oscar de Filme Estrangeiro. Bingo/Bozo, com toda a sua euforia, numa adaptação brasileira de Arlindo Barreto, sempre me pareceu meio agressivo em seu lay out. Tinha um não sei quê de palhaço “It”: a mim, nunca comoveu nem fez rir. Mas morei numa casa onde o SBT só era sintonizado por mim, e de vez em quando. Adorava o “Domingo no Parque”, com seu Silvio, e o “Troféu Imprensa”, do qual, sem ironia alguma do destino, eu iria participar mais de uma dezena de vezes, como jurada (de morte, como diria meu ex-boss Décio Piccini), anos mais tarde.

Bozo tinha aquela peruca cor de fogo, aquele macacão azul cintilante, bocão gigante pintado no vermelho, me assustava. Eu era fã de Dona Benta e Tia Anastácia, Emília e Visconde de Sabugosa. Diferentemente do que o filme “Bingo” tenta pregar, Xuxa não foi, de cara, concorrente do Bozo. Quando ela chegou à Globo, o palhaço já estava nas manhãs do SBT havia seis anos. Bozo começa em 1980, quando Zilka Salaberry ainda dava ordens à Narizinho de Rosana Garcia, pelas linhas da adaptação mais bacana do “Sítio do Picapau Amarelo”. A loira chegou à nave da Globo em 86, mas, no filme, aparece como a pedra no sapato da audiência de Bingo/Bozo desde o início da trajetória do palhaço americano no Brasil.

Em dado momento do longa, Bingo chama Gretchen (ali interpretada por Emanuelle Araújo) para rebolar no seu picadeiro infantil. Faz “trenzinho” com ela, um breve encochar, diante de uma plateia infantil que vai à loucura com aquele ritmo. E o canal, enfim, bate a líder em audiência, a Mundial, que no filme remete à Globo.

“Bingo”, primeiro filme dirigido pelo premiado montador Daniel Rezende, exacerba os exageros dos anos 80, década em que eu cresci, em meio a hiperbólicas ombreiras e mullets, sem notar que alguém quisesse me sexualizar antes da hora. Juro que não notei. Talvez, dirão, vi mais “O Sítio” do que a Xuxa ou o Bozo, não cultuei o “Conga la Conga” da Gretchen, em casa, tocavam muitos LPs de Chico e Roberto (só fui entender a letra de “Cavalgada” depois de grande: de novo, a malícia não está na cabeça das crianças). Mas o fato é que até chegar à faculdade de Jornalismo, aos 18, nunca tinha ouvido alguém dizer que a Xuxa se vestia inadequadamente ou que o Bozo nos pilhava com seu ritmo alucinógeno.

Essa geração conheceu também a Simony e seu Balão Mágico, sob uma moldura bem mais politicamente correta (só fomos vê-la com outros olhos anos mais tarde, quando, em dia de rebelião no Carandiru, onde ela visitava o namorado, ela entraria ao vivo, diretamente para o programa do Gugu).

Definitivamente, quem foi criança nos anos 80 acumula referências muito mais “impróprias” do que uma exposição como a do MAM.

 

P.S.: conheço em detalhes impagáveis os bastidores da entrevista que deu origem ao conhecimento sobre a história de Bingo/Bozo, de nome Arlindo Barreto, para o (infelizmente extinto) jornal “Notícias Populares”, pela ótima narrativa de quem o entrevistou, dona Keila Jimenez, dos tempos em que trabalhamos juntas, dividindo baia, com muito mais alegrias que tristezas, durante dez anos, na redação do Estadão.

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Cristina Padiglione

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