Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Brasil avança no volume de produções, mas recua na proteção à indústria audiovisual

Seu Jorge, Naruna Costa e Lee Taylor estão em 'Irmandade', produção nacional cuja 2ª temporada está para chegar à Netflix / Divulgação

Promovida pela Rio2C, evento que nasceu como RioContent Market, a volta dos encontros presenciais entre produtores, roteiristas, diretores e players após dois anos de pandemia sublinhou os contrastes entre a indústria audiovisual que temos hoje no país, frente ao cenário anterior.

Desde 2011, o Brasil vinha avançando, por meio da Ancine, no fortalecimento de um setor que demorou a se estabelecer, apesar da inegável potência que TV e cinema exercem sobre a economia de um país. Em 2018, o governo Bolsonaro puxou o freio da agência de cinema, passando a questionar o conteúdo das obras e a desprezar suas políticas de incentivo, todas então já estabelecidas por fundos como a Condecine, que é alimentada pelas empresas de telecomunicação e bilheterias de cinema, não onerando,  portanto, investimentos públicos em outros segmentos essenciais, como saúde, educação e meio ambiente.

Nesse período, a turma do streaming pisou no acelerador de modo inversamente proporcional à paralisação imposta pelo governo naquela que deveria ser a sua agência de cinema, motor que, longe de se assemelhar a qualquer espécie de mamata, como acusam os ignorantes sobre o assunto, fomenta uma economia que movimenta mais de R$ 25 bilhões ao ano no Brasil.

Netflix, Amazon, HBO Max, Paramount+, Disney, Star+ e outras gringas se estabeleceram com louvor por aqui, ávidas por um dos maiores mercados de consumo de vídeo do mundo (fator que pode ser explicado, entre outros argumentos, pela fraca adesão à leitura, já que estamos mais ocupados com telas do que com livros).

Os gringos do streaming vêm salvando a indústria nacional, dizem muitos, mas essa salvação é instantânea e altamente dependente. Não garante sobrevivência futura, não fortalece as bases do segmento para driblar eventuais afogamentos e naufrágios em casos de tsunami.

Os grandes investimentos do streaming aqui ainda carecem de fato de uma regulamentação, não simplesmente para impor cotas de produção nacional, recurso usado no início das políticas de fomento ao audiovisual via TV paga e ainda vigentes. O cliente que paga pela Netflix pode ter 30% do catálogo feito de títulos nacionais e certamente fará sua escolha para vê-los ou não, como acontece com a opção de mudar de canal ou desligar a TV. Oferta para honrar suas preferências o espectador já tem.

Mas as produtoras brasileiras estão atualmente entregues às determinações das plataformas que lhes encomendam os títulos de séries, documentários ou filmes, sem qualquer proteção regulamentada que lhes assegure direitos de propriedade intelectual ou autoral. É algo bem distante do mecanismo criado pela Ancine a partir da Lei da TV paga, de 2012, que determina normas para o cumprimento das cotas de programação nacional.

Exemplo prático: para ter direitos de propriedade de séries como “O Negócio”, “Magnífica 70” e outros títulos feitos no Brasil, a HBO financiava essas produções do próprio bolso, sem usar incentivos por meio de leis criadas pela Ancine. Assim, essas séries pertenciam à HBO, e não  à Mixer ou à Conspiração, produtoras nacionais que realizaram as obras. Mesmo dando empregos locais, essas produções não eram consideradas brasileiras porque, uma vez tendo sido pagas pela HBO, pertenciam ao canal, e portanto não serviam para cumprir cotas de “produção nacional” exigidas por lei na TV paga brasileira.

Dessa forma, para cumprir as cotas nacionais, a HBO era forçada a usar as leis de incentivo e investir em outras produções brasileiras, dessa vez usando os recursos promovidos pela Ancine. O uso do fundo abastecido pela Ancine dá à produtora brasileira, e não ao canal estrangeiro, a propriedade da obra, cabendo-lhe, no mínimo, 51% da sociedade. Na parceria, a produtora ganha o direito de distribuição da produção após um prazo de três a cinco anos, o que é acordado entre ela e o contratante.

Sem recursos que protejam a indústria nacional, como o artigo 39, que funciona só para canais estrangeiros de TV no Brasil, teremos o almoço do dia, sem garantir o jantar. Foi pelo artigo 39, que dá à programadora estrangeira a alternativa de trocar a tributação a ser paga ao governo por investimento em produção local (verba financiada pelo Condecine), que a FOX produziu maravilhas como “Um Contra Todos” e “Impuros”, duas grandes séries, que lhe renderam algumas indicações ao Emmy Internacional.

É lindo ver a Netflix anunciar tantas produções no país por meio de um orgulhoso programa batizado como “Mais Brasil na Tela”, mas as produtoras que assinam tais títulos ganham apenas pelo que entregam, sem meios de proteção para investir em seu crescimento. A produção segue para cento e tantos países e a gente fica feliz por ver atores e histórias made in Brazil no mundo todo, mas a produtora alcança a rentabilidade que poderia ter no negócio?

Uma animação como “Show da Luna”, da Pinguim Content, vendida para 96 países, também chega ao mundo todo e abastece diretamente a produtora brasileira, não o Discovery Kids, onde é exibido. É um título financiado por meio de recursos promovidos pela Ancine a um canal estrangeiro, que informa a audiência do programa e dá ao produtor a chance de estender para fora da tela as possibilidades de ganhos sobre a obra.

Já os serviços de streaming não fornecem dados de audiência sobre seus títulos nem às produtoras que os realizam. Isso limita, por exemplo, a exploração do programa para eventual licenciamento de produtos, pois o produtor não tem números para fechar parcerias em outros negócios inspirados no sucesso de seus personagens ou enredos.

Questionada em painel na Rio2C sobre os modelos de negócio da Netflix e a possibilidade de a plataforma se render a coproduções em que a produtora tenha alguma ingerência sobre a propriedade da obra, Elisabetta Zenatti, chefona da Netflix no Brasil, disse que a empresa está aberta a diálogos para diferentes formatos de parcerias. A ver. Afinal, até o conceito de se abrir para publicidade, a fim de atenuar a já previsível perda de consumidores, vem sendo repensado pela companhia.

Os meios de proteção legal às produtoras que fazem negócios com TV e cinema no Brasil não se restringem aos players internacionais. Também são regulamentados por outros artigos para contemplar programadoras e canais nacionais, como Globo, Record, Bandeirantes e Curta!, além de emissoras públicas de todo o país que bebem com êxito no FSA, o Fundo Setorial Audiovisual. Foi dessa forma que o mercado viu crescer e se multiplicar o número de produtoras independentes por todo o Brasil nos últimos dez anos, ampliando o volume e a distribuição dessa economia, sem falar na pluralidade de cores, sotaques e histórias sobre o país.

Para fazer jus ao grande volume de produções em desenvolvimento atualmente pelo streaming, é preciso criar regulamentações. Não apenas por questão de equidade para fazer frente à TV paga, como vêm gritando executivos do setor há anos, mas para fortalecer uma indústria capaz de trazer incontáveis recursos à economia brasileira. Isso inclui nosso streaming nacional mais relevante na competição com os estrangeiros, no caso, o GloboPlay.

Em março, o deputado David Miranda (PDT-RJ) apresentou um projeto para tributar os serviços de streaming e VOD (Video On Demand). Trata-se do Projeto de Lei 483/2022, que inclui as plataformas estrangeiras que ofertam vídeo sob demanda que atuam no Brasil como contribuintes da Condecine.

Miranda propõe que serviços estrangeiros, como Netflix, Disney+ e Amazon Prime paguem alíquota de 20% de Condecine, tendo como fator gerador a receita sobre os serviços prestados. A mesma tributação não se aplicaria a empresas nacionais como o GloboPlay.

A indústria audiovisual afeta diretamente o turismo e toda uma cadeia de negócios, como se pode constatar atualmente pelo êxito da Coreia do Sul nesse segmento. É um setor que lá cresceu e se defendeu de predadores internacionais à base de altos investimentos e regulamentação capaz de proteger a indústria nacional.

Por aqui, os mecanismos promovidos por políticas públicas andam tão escassos, que só vemos o mercado brasileiro se deleitar com o investimento instantâneo dos gringos, sem espaço para negociações que lhe sejam favoráveis. Aceitamos o que nos dão, conceito fortalecido pela pandemia, quando muitos produtores de filmes encontraram no streaming a única janela de exibição para suas obras.

Para produtoras muito bem estabelecidas, como O2 Filmes, Conspiração, Gullane e Mixer, o mundo ideal é sobreviver sem depender de recursos públicos. Mas esse é um time que tampouco apresenta hoje dependência de fonte única e, não custa lembrar, cresceu graças à produção de filmes publicitários, em um tempo anterior aos recursos amadurecidos pela Ancine. Até que uma gama maior de produtoras ganhe essa margem de manobra, o mundo ideal pede alguma proteção aos artesãos locais dessa arte.

Criada em setembro de 2001, no segundo governo FHC, a Ancine demorou a ganhar fôlego, com conquistas feitas a conta-gotas, com muito empenho de produtoras que se uniram para discutir políticas de financiamento para cinema e TV. A agência demorou quase dez anos para começar a surtir efeito, o que aconteceu especialmente após a implementação da Lei da TV paga e alguma proteção ao patrimônio nacional diante dos canais estrangeiros que aqui fincaram pé.

A criação de regrinhas básicas para o setor do streaming no Brasil não é assunto novo, mas com a queda no número de assinantes de TV, em oposição ao crescimento do saldo de consumidores dos menus sob demanda, faz-se mais urgente que nunca organizar a bagunça (para uns), que é uma festa (para outros).

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Cristina Padiglione

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