Cacá Diegues e o Brasil que ele viu na TV

O mundo físico se despede nesta sexta, 14 de fevereiro, de Cacá Diegues, cineasta que viveu por 84 anos e a quem chamam de “gigante”, “genial” e outros termos superlativos. Mas, sobretudo, o homem transbordava afeto – quando filmava, quando pensava, quando falava, quando respirava.
Entre as tantas cenas que construiu, dignas de serem guardadas pelo repertório nacional, e até pelo histórico que guiou meu olhar sobre a televisão brasileira, suas origens e efeitos, destaco aqui dois recortes da obra de Cacá, a começar por “Bye Bye Brasil”. Óbvio? Em parte, mas quisera eu que essa obviedade fosse tão latente hoje como já foi em décadas passadas, por muitas gerações.
“Eu vi um Brasil na TV”, frase da canção que embala o filme, já não tem atualmente o peso que teve quando o longa e a canção nasceram, em em 1979, preconizando o poder da tela em hipnotizar a atenção do povo.
Desde o advento internet, o Brasil já não depende tanto da TV para ser visto, mas o mundo que agora se vê diante de tantos recortes e telas graças à democratização da internet e do uso de telefone celular, obrigatoriamente é fruto daquele universo que só existia quando iluminado pelos holofotes da TV.
A TV, preconizava “Bye Bye Brasil” naquele momento, sufocou o circo e suas trupes teatrais. No longa de Cacá Diegues, as antenas em forma de espinha de peixe espetadas em cada telhado de casas a perder de vista no horizonte brasileiro prenunciavam a submissão do cidadão às telas.
No livro “Brasil em Tempo de TV” (Boitempo, 1996), Eugênio Bucci nos carrega por esse país obediente à TV por meio de uma série de textos publicados no jornal O Estado de S. Paulo entre 1994 e 96), em boa parte instigado pela frase “Eu vi um Brasil na TV”, que batiza ainda um ensauio de Maria Rita Kehl.
Diz Bucci:
“[…] Em 1979, na música-tema de ‘Bye Bye Brasil (filme de Cacá Diegues), Chico Buarque cantou ‘eu vi um Brasil na TV’. O leitor verá que os textos aqui reunidos vêm, de uma certa forma, complementar a canção: fora da TV, talvez seja muito improvável encontrar algum Brasil para ser visto. É difícil enxergá-lo. Antes que se pense que é um exagero, convém explicar. O Brasil que se via fora da TV foi perdendo sua legitimidade no espaço público, como se se tratasse de um Brasil menos importante, menos consequente, menos verdadeiro. Pouco a pouco, a linguagem audiovisual da TV, perpassando os domínios diversos do debate público, monopolizou-o. O jeito próprio que a televisão inventou de ver o mundo, ou melhor, de ver o país, contaminou o modo de olhar dos cidadãos. Políticos, querendo chamar a anteção do púbico, passaram a ter de aparecer na TV. Em caso contrário, eram simplesmente ignorados. O expediente de ‘criar um fato’ para despertar o interesse da opinião pública (esse mito liberal que se diluiu na noção da popularidade produzida pelos meios de comunicação de massa) virou sinônimo de ‘dar um jeito de aparecer na TV’. Em poucos anos, o Brasil fora da TV começou a inexistir. E as coisas só pioraram desde o filme de Cacá Diegues e a canção de Chico Buarque e Roberto Menescal. Desde ‘Bye Bye Brasil’, a tiraia da TV se alastrou e dominou o que faltava dominar.[…]”

José Wilker e Betty Faria em ‘Bye Bye Brasil’
Tenho, pessoalmente, um apreço imenso por essa coletânea de textos do Bucci e abordei vários trechos de sua obra em aulas que ministrei no curso de pós-graduação de Jornalismo Cultural na Faap. As análises ali registradas abordam muito da eficiência da televisão na capacidade de unir o país como nenhum outro projeto de autoritarismo conseguiu no Brasil. E é fascinante notar como isso está sintetizado no filme de Cacá Diegues, estrelado por José Wilker, Betty Faria, Fábio Júnior, coroado pela canção de Chico e Menescal.
Mais adiante, ainda no livro “Brasil em Tempo de TV”, Bucci se debruça sobre o ensaio de Maria Rita: “[…]Em seu ensaio ‘Eu Vvi um Brasil na TV’, Maria Rita Kehl descreve com exatidão esse processo. Dedicado exclusivamente à análise da Rede Globo, o texto de Maria Rita é indispensável para a compreensão de algo mais amplo do que a Globo: ele explica a própria formação das granbdes redes como fator da integração nacional.
‘Essas imagens únicas que percorrem simultaneamente um país tão dividido como o Brasil’ – escreve a autora – ‘contribuem para transofrmá-lo em um arremedo de nação, cuja população, unificada não enquanto ‘povo’ mas enquanto público, articula uma mesma linguagem segundo uma mesma sintaxe. O conteúdo dessa linguagem importa menos que seu papel unificador, uniformizador: a integração se dá ao nível do imaginário. […]”
O texto de Maria Rita foi originalmente publicado no livro “Um país no ar”, assinado por ela, Alcir Henrique da Costa e Inimá Simões (Ed. Brasilienses/Funarte, 1986).
VEJA ESTA CANÇÃO
Outra obra que nem está entre as mais memoráveis do obituário do dia, mas merece todos os aplausos e uma bem-vinda reprise na TV Cultura, produtora da série, é “Veja Esta Canção”, feita justamente para a TV pública de São Paulo. São quatro episódios roteirizados com o propósito de dramatizar letras de música que narram uma história de amor.
A playlist inclui “Pisada de Elefante”, de Jorge Ben Jor, com uma adaptação livre da ópera “Carmen”, de Georges Bizet; “Drão”, de Gilberto Gil, buscando tom de comédia, “Você é Linda”, de Caetano Veloso, e “Samba do Grande Amor”, de Chico Buarque. O elenco reunia Jacqueline Laurence, Débora Bloch, Pedro Cardoso, Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Emílio de Mello, Chico Diaz, Silvia Buarque, Marcelo Tas, Catarina Abdala, Maria Lúcia Dahl, Floriano Peixoto e Karen Acioly, entre outros.
“Veja Esta Canção” é de 1994, ano de ouro na TV Cultura, quando nasceu também “Confissões de Adolescente”, produção de Daniel Filho, e o eterno “Castelo Rá-Tim-Bum”, de Cao Hamburger.
A filmografia de Cacá, evidentemente, vai muito além dessas duas obras aqui citadas, mas de alguma forma, elas sintetizam muito do que ele nos deixou. Nascido em Maceió (AL), Carlos José Fontes Diegues se mudou para o Rio aos 6 anos, com a família, tendo se tornado, poucos anos depois, um dos fundadores do Cinema Novo no Brasil. A formação acadêmica, pela PUC, veio por meio do Direito e o levou ao movimento estudantil.
Em uma lista de 18 filmes, vale destacar ainda “Um Trem Para as Estrelas” (1987), “Dias Melhores Virão” (1989), “Tieta do Agreste” (1996), “Ofeu” (1999) e “Deus é Brasileiro” (2003). Seus filmes frequentaram os maiores festivais do mundo, incluindo Veneza, Cannes, Berlim, Nova York e Toronto.
Diegues foi casado com a cantora Nara Leão, com quem teve duas filhas, Flora (1984-2019) e Isabel. Era membro da Academia Brasileira de Letras, dono de um fardão do time de imortais, e foi oficial da Ordem das Artes e das Letras (l’Ordre des Arts et des Letres) da República Francesa. Também foi membro da Cinemateca Francesa. Tinha ainda o título de Comendador da Ordem de Mérito Cultural e a Medalha da Ordem de Rio Branco, a mais alta do Brasil, concedidos pelo governo.