Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Casagrande chega aos 60 guiado pelas memórias da Pauliceia

Walter Casagrande Jr. pelas lentes de Bob Wolfenson

Da série de arianos televisivos que se tornam sexagenários neste ano de 2023, com todo respeito a Xuxa Meneghel, sou mais o Walter Casagrande Jr.

Não pela camisa do Timão, que eu até reverencio a Democracia Corintiana, mas sou São Paulo Futebol Clube desde criancinha, time que ele inclusive defendeu por um ano.

A celebração ao aniversariante deste 15 de abril (data em que também abraço minha amiga mais longeva e confidente, Fabiana Robertoni da Costa) é justamente a franqueza e identificação do Casão com a Pauliceia, a São Paulo dos versos de Mario de Andrade, da música do Adoniran, da Rita Lee e dos Titãs, entre outros sons e cores.

Roqueiro e amante de música brasileira, o sujeito se viu involuntariamente diante dos holofotes já aos 17 anos, quando corria atrás de uma bola e fazia o placar girar. Desde então, a câmera nunca mais deixaria de seguir o rastro do cabeludo cujos cachos foram domados para se tornar o comentarista de futebol mais conhecido do país, sem jamais perder a identidade e o acento da ZL, que bom.

O blog conversou com Casão para percorrer os pontos de São Paulo que moram na memória mais afetiva desses 60 anos, e as histórias estão contadas mais ou menos como relato a seguir, com algumas intervenções do próprio.

Walter Casagrande Jr. chega aos 60. Foto: Acervo pessoal

DA PENHA

O bairro que viu o menino Walter crescer ia de sua casa até o clube, os campinhos de futebol, a escola, a quadra da Nenê de Vila Matilde e a igreja católica, mas também o terreiro de umbanda, que toda fé é bem-vinda, como sabia dona Zilda, a mãe.

A família, no caso com dona Zilda, seu Walter, mais as irmãs Zildinha e Zenaide, passava o sábado no Clube Esportivo da Penha. “Aí um dia o Jacó, que jogava no gol pelo time do futebol de salão do clube, falou : ‘Meu, vem aí treinar'”. Ele foi. Deu no que deu.

Não demorou a chegar ao Dente de Leite do Corinthians, no Parque São Jorge, aos 13 anos.

ROQUEIRO NO SAMBA

Corta para a quadra da Nenê de Vila Matilde, onde jogou muita bola nas tarde de sábado. Depois dos 15, passou a frequentar o pedaço também para acompanhar os ensaios da escola de samba, à noite.

Foi pela mesma Nenê que ele desfilaria no Carnaval de São Paulo anos mais tarde, ainda na Tiradentes, avenida que abrigou os desfiles da cidade antes que o Sambódromo do Anhembi fosse erguido.

A Penha deu ainda ao seu acervo de afetos e conhecimentos os primeiros amigos, as duas escolas onde estudou, ambas públicas, e o primeiro romance, motivado por um correio elegante da quermesse da Igreja Santo Estêvão.

Tímido, mandou mensagem para a garota e, para sua surpresa, foi correspondido. “Você quer namorar comigo?” Ela topou. “Beleza”, respondeu ele. Em vez de engatar um beijo, deixou a menina no vácuo e voltou à roda dos amigos, que naquela fase o interessava mais.

“Minha curtição era essa: saía de sexta e sábado pra ir ao Bixiga, eu e Magrão [o amigo Wagner]. A gente tinha 15, 16 anos. Eu tinha uma timidez enorme, saía só pra me divertir, via as meninas, mas não conseguia namorar. Eu era o cara mais divertido, arrumava todas as confusões, e acho que era um jeito de me proteger da minha timidez com as meninas, era uma defesa.”

DA ESQUINA DO PECADO

“Quando comecei a namorar, mudou um pouco a maneira de eu ficar com os amigos. Tinha a Esquina do Pecado, onde eles ficavam rindo alto, e eu, de longe, ouvindo aquelas risadas enquanto estava com ela, ficava desesperado pra me juntar a eles.”

“Eu fui moleque por muito tempo.”

DO BIXIGA

Entre 1978/79, os amigos seguiam da quadra da Nenê para os barzinhos do Bixiga. Lá batiam ponto no Olds Bar, de repertório hippie. Eram os tempos de Sá e Guarabira, Novos Baianos e que tais.

Havia também o Ópera Cabaré, de som variado, e Uma Janela para o Céu, onde predominava o sambão e os amigos encerravam a madrugada. A essa altura, lá pelas 4h da manhã, conta ele, “eu já estava morto”. E contentava-se em ser só espectador.

DE PERDIZES E POMPEIA

Já ídolo do Corinthians, trocou a Penha por Perdizes. Comprou apê para a família na rua Aimberê, e quando se casou com Mônica, mãe de seus três meninos, adquiriu outro imóvel para os pais ali perto, na rua Diana.

E por que Perdizes?

“Tinha um diretor do Palmeiras, Aldo De Mauro, ele vendia e alugava apartamentos pra jogadores de todos os times, mais Corinthians e Palmeiras. Os do São Paulo moravam mais lá perto do Morumbi, que não tinha o CT [na Barra Funda], mas os outros moravam ali na Pompeia, Perdizes e Sumaré.

Eu comprei um apartamento no prédio que morava o Wagner, que jogava comigo no Corinthians, e o Juninho, que veio da Ponte [Preta] pro Corinthians. O Magrão [Sócrates] morava em Higienópolis. Ele facilitava pra jogador de futebol, não pedia entrada, dividia numa porrada de meses, naquela época ninguém ganhava bem.”

Um ano depois de casado, foi jogar no Porto, em Portugal, seguindo de lá para o Ascoli, na Itália, e Torino, na mesma Bota. Foram sete anos de Europa, de onde voltou para defender o Flamengo por um ano.

Somando o ano em que atuou pela Caldeinse, em Poços de Caldas, foram nove anos longe da cidade natal. “Morei 90% da minha vida em São Paulo, mas como a vida de jogador é agitada, parece que eu morei muito mais tempo fora.”

DOS PALCOS DA CIDADE

A vizinhança com o Sesc Pompeia, reduto de grandes e memoráveis shows para o seu repertório, fez dele um frequentador assíduo do pedaço. Foi ali que conheceu Nando Reis e Marcelo Fromer, ainda antes que os Titãs acontecessem. Lá viu Arrigo Barnabé e Pepeu Gomes, guitarrista que estampava uma parede de seu quarto quando ainda adolescente, com o pôster do disco Ao Vivo em Montreux (1980).

“A Pompeia é conhecida como o berço do rock de São Paulo, de onde vieram Tutti Fruti, Mutantes.”

Dos shows memoráveis vistos na cidade, uma extensa lista inclui Raul Seixas, Adoniran Barbosa, Gonzaguinha, Rita Lee, AC/DC, Roger Walters, Queen (com Freddy Mercury, em 1981, no Morumbi), Mercedes Sosa, Titãs, Made in Brazil, Joelho de Porco, Premeditando o Breque, Peter Gabriel, Bruce Springsteen, Milton Nascimento e Trace Chapman, entre tantos outros.

Frequentou endereços icônicos para a cena cultural da cidade, como o Lira Paulistana, na Teodoro Sampaio, e a Fábrica do Som, programa da TV Cultura que revelou várias bandas. Foi lá que viu pela primeira vez Arrigo Barnabé e sua “Clara Crocodilo”, música que batizou seu primeiro álbum. Testemunhou também os “Tubarões Voadores”, do mesmo Arrigo.

Com trânsito livre com Manoel Poladian, que cuidava dos shows no Anhembi, e Marcos Lázaro, responsável pelos espetáculos do Ibirapuera, revezava-se entre os dois endereços todo final de semana. “Sexta era certeza me encontrar num show, domingo à tarde era só quando eu estava namorando, e ia com a namorada ver show no Ibirapuera. Sábado era dia de concentrar [para o jogo do domingo].”

Foi em uma dessas ocasiões que ele subiu ao palco com Rita Lee, ao lado de Sócrates, em 82, quando a Democracia Corinthiana se fazia tão presente para um público ainda temeroso de ir às urnas.

Sócrates, Rita Lee, Wladimir e Casagrande em show de 1982

No mesmo ano, convenceu Gonzaguinha a se juntar a um elenco que se apresentou em show para arrecadar dinheiro para a campanha de Lula ao governo do Estado de São Paulo. Foi buscar o cantor pessoalmente no Tuca, outro palco frequente no seu mapa de 60 anos de vida, onde viu várias peças de teatro.

“O Gonzaguinha já tinha dito que não queria ir, fui ao Tuca, vi o final do show, e falei com ele. ‘Não sou ligado a partido’, ele falou, mas eu disse: ‘Pô, Gonzaga, então vamos pela democracia, esquece o partido’. Aí ele me falou: ‘Você tem bons argumentos, mas eu tenho uma condição: você vai cantar comigo no palco’. Eu topei. Na hora de subir, chamei o Magrão, ele não quis subir, mas o Pita e o Wladimir subiram comigo.”

No Teatro Martins Pena, no Largo do Rosário, na Penha, viu Belchior, alvo do próximo tributo musical que vem organizando para acontecer em 13 de julho, no Theatro Municipal de São Paulo, onde já reverenciou Adoniran Barbosa em show de 2018.

A homenagem ao rapaz latino-americano unirá Frejat, Eduardo Gudin, Clemente (dos Inocentes), Arrigo Barnabé, Jane Duboc, Joyce Moreno, Ana Cañas, Daíra, Vânia Bastos e Zeca Baleiro.

“Sempre fui apaixonado pelo Municipal, mas me apaixonei mais depois que virei amigo do maestro João Carlos Martins”, conta.

DO GRAMADO À ARQUIBANCADA

A frequência dos estádios se deu pelo futebol, como jogador ou comentarista, e pela música, mas um endereço que guarda lugar especial no seu repertório, claro, é o Paulo Machado de Carvalho, na Praça Charles Miller, o dito Pacaembu, casa do Corinthians até a inauguração do Itaquerão.

Palco de seus gols mais importantes pelo alvinegro paulistano, foi lá que ele ouviu uma das maiores declarações de amor que já recebeu na vida: “Volta, Casão, seu lugar é no Timão”, grito uníssono da torcida, enquanto ele, em campo, jogava contra o Corinthians, vestindo a camisa do Flamengo. Ao fim do jogo, desabou a chorar.

A cena está registrada e relatada por Juca Kfouri no ótimo documentário de Susanna Lira pelo GloboPlay, “Casão Num Jogo Sem Regras”, lançado há quase um ano.

Montagem de fotos da abertura da série ‘Casão Num Jogo sem Regras’, no ar pelo Globoplay

Foi também com o Pacaembu em foco que ganhou um concurso de fotos promovido para o aniversário da cidade, um clique feito por ele mesmo, à noite.

No Cícero Pompeu de Toledo, casa do SPFC, protagonizou jogadas, entre passes a gol e gols propriamente decisivos, que lhe renderam o apelido de Mister Clássico.

FICA COMIGO

O estádio do SPFC marcou para sempre também a sua trajetória pessoal. Foi naqueles muros que ele pichou mensagem para Mônica Feliciano, com quem viria a se casar e ter três filhos: Victor Hugo, Ugo Leonardo e Symon, e dali vieram dois netos.

“Fica comigo, vai?”, dizia o recado, ao lado de um desenho da Mônica de Mauricio de Sousa. “Pichei  também os muros do túnel da Paulista [que acessa a Rebouças e a Doutor Arnaldo] e o muro do Parque São Jorge. Levei ela para um passeio de carro pela cidade”, lembra.

Sim, já sabemos que a estripulia fez efeito. Foram 21 anos de união.

DA VILA MADALENA

Atualmente, vive de romances sem compromisso e mora sozinho, como aprecia, na Vila Madalena, seu bairro há mais de dez anos, onde circula sob olhares simpáticos, sorrisos e pedidos para selfie, sempre com civilidade e respeito, como já testemunhei no Café Santo Grão, da Livraria da Vila, e no Camélia Òdòdó, restaurante de Bela Gil.

Não é incomum dar ali de cara com o Big (como o chama seu amigo Wagner, da Penha, ou como dizia Sócrates, ambos tratados por Casa pelo apelido de Magrão). Idem no Parque do Ibirapuera, onde caminha duas vezes por semana, em geral sob manifestações de afeto, mesmo durante o tenso período da campanha eleitoral do ano passado, quando seu posicionamento político alimentava a ira dos bolsonaristas.

TODAS AS CORES

Na mistureba de sotaques, cores e culturas promovida por São Paulo, Casão comemora o fato de ter crescido longe dos ranços de segregação que infelizmente ainda contaminam um bocado os caminhos dos paulistanos.

“Tenho uma parte da família que é negra, super grande, e girava muito em torno da Nenê [de Vila Matilde]. O Adilson, jogador de basquete da seleção brasileira, era irmão do Ditão, zagueiro que jogou no Corinthians ali na metade dos anos 60, até começo dos anos 70. Meu tio casou com a sobrinha do Ditão e virou uma família só. E minha tia mais nova, irmã mais nova da minha mãe, ela era do samba.

Então a minha casa sempre foi de mesa cheia, o pessoal chegava e ficava batucando samba. Eles tratavam a gente como primo, e ficamos primos mesmo, eu gostei.

Nasci numa família que, com todos os problemas que uma família possa ter, no caso do preconceito, do racismo e machismo, eu cresci com uma influência completamente positiva.

Mesmo meu pai sendo alcoólatra e às vezes agredindo, eu não convivia com ele durante a semana, convivia com a minha mãe e as minhas irmãs.

Meu pai era pai de sábado e domingo, entrava no campinho pra jogar bola, comprava jogo de botão, me levava no campo pra ver os caras jogarem, mas de segunda a sexta, eu convivia com três mulheres.

Quando eu via o meu pai agredir a minha mãe, aquilo me feria, porque eu estava com ela a semana toda. Eu não cresci achando que aquilo era normal.”

DA DEMOCRACIA, MAIS QUE CORINTIANA

Mas também vieram de casa os valores que fizeram dele um nome na linha de frente da defesa democrática no Brasil dessas últimas décadas. Casão esteve no histórico comício pelas Diretas Já no Anhangabaú, em abril de 1984, onde chegou de metrô.

“Eu nunca vi tanta gente indo pro mesmo lugar, nunca fui a um show com mais de 1 milhão de pessoas, São Paulo toda indo pra lá. Fomos de metrô, eu, o Juninho, o Adilson [Monteiro Alves], o Magrão, e as pessoas vinham e só falavam do comício. Ninguém tirou foto, ninguém pediu autógrafo.

A Democracia [Corintiana] já era bicampeã paulista. Foi o dia que a gente se sentiu mais povão na Democracia.”

A mesma bandeira o levou ao Largo São Francisco em agosto passado, quando uma cerimônia reuniu vários setores da sociedade civil para a leitura da carta pela Democracia e Estado Democrático de Direito.

Imagem do comício do Anhangabaú pelas Diretas, em abril de 1984

DO RÁDIO AO PODCAST

Para fechar nosso circuito de seis décadas, vale sintonizar na 89 FM, onde ele comanda, ao lado de Bento Melo, filho do titã Branco Melo, e de José Luiz, o Rock Bola, programa que vai ao ar toda segunda-feira, às 20h, mesclando futebol e rock, sem firulas.

O rádio, meio que segue aclamado e não perde a majestade, é afinal a mídia de maior vínculo com a região onde é produzida e consumida. Casão está nas ondas da frequência modulada desde os anos 1990, quando trabalhou na própria 89.

Depois zapeou entre Transamérica, Kiss FM e Brasil 2000, até voltar à Rádio Rock.

Nas noites de terça, às 19h30, divide com Juca Kfouri e José Trajano o adorável Cartão Vermelho, no UOL, ao vivo, e disponível sob demanda no YouTube. Ali se fala de futebol, claro, mas muito de assuntos factuais do cenário nacional e de cultura.

Em breve, veremos Casão também na série documental de seu ex-parceiro de Globo, Galvão Bueno, que estreia em maio no GloboPlay. E ainda em outra produção anunciada pelo GloboPlay nesta semana, “Sócrates Brasileiro”, de Walter Salles Júnior, prevista para ser lançada em 2024.

Nos planos a seguir está ainda um podcast, projeto coordenado por Zico Góes, ex-diretor da FOX/Disney  e da MTV Brasil (a boa MTV Brasil, dos idos do Grupo Abril, onde o aniversariante do dia também esteve presente).

São 60 anos e muitas histórias para contar, e não há trilha sonora que lhe baste, mas se tivesse que eleger uma canção para este momento, o som vem de Rita Lee, “Orra Meu”, como reza o mais autêntico dialeto paulistano:

“Estou ficando velho, cada vez mais doido varrido”.

 

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Cristina Padiglione

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