Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Cinco anos depois, o que mudou da MTV aberta para a paga?

Imagem de Marcos Mion e Astrid, de 26 de setembro de 2013, registrada pelo jornalista e amigo João Fernando, traz os bastidores da última transmissão ao vivo do canal que nasceu em 1990, sob a gestão do Grupo Abril. Foi uma festa digna do histórico da casa: pelos dez andares do Edifício Victor Civita, no Sumaré, circulavam os vários talentos criados e alimentados pela emissora em seus 23 anos de gloriosa existência. Freneticamente, subíamos e descíamos pelas escadas estreitas, cumprimentando, rindo e chorando o cadáver anunciado. Como não era exatamente uma boca livre, havia lá umas cervejas e sanduíches, mas nos alimentávamos de idas e vindas à Lanchonete (que sempre chamamos de padaria) e pizzaria Real, onde a contagem regressiva pelo último suspiro realmente aconteceu, à beira da calçada onde se inicia a Avenida Professor Alfonso Bovero, no mais televisivo dos quarteirões brasileiros: ali nasceu a TV Tupi e, avançando pela outra esquina, da Rua Piracicaba, em imóvel ainda pertencente ao Grupo Silvio Santos, o fôlego de Tatá Werneck, Marcelo Adnet, Bento Ribeiro, Daniel Furlan e Dani Calabresa, entre outros. Alguns anos antes, era também ali que Jô Soares se descobriu na arte do talk show, onde hoje trafegam os boleiros da ESPN Brasil. Não é questão de saudosismo, e sim de memória, mas vamos em frente. A última transmissão ao vivo aconteceu em 26 de setembro de 2013, com seis horas de programação que incluiu shows de Marcelo D2, Guilherme Arantes e Vanguart. Confira a seguir o que mudou de lá para cá:
A MTV, marca da Viacom licenciada para a Abril no Brasil, passou aos domínios da multinacional a partir de outubro de 2013, como canal pago. Maria Eugênia Sudonic, a Mareu, foi o primeiro grande talento descoberto pela nova gestão, ganhando destaque pelo reality "Adotada". Outro trunfo alimentado à base da emergência por produções nacionais, logo no início da nova gestão, foi Supla, que protagonizou dois realities de namoro no canal, a partir do "Papito in Love"
Realities de namoro e pegação entre héteros, aliás, viraram o ponto alto da MTV paga. O "Cat Fish" é uma DR (Discussão de Relação) sobre traições e afins, enquanto o "De Férias com o Ex" e "Are You The One? Brasil" alimentam sexo e pegação entre pares confinados em cenários paradisíacos. Esse conteúdo é o que mais abastece as redes sociais e outras plataformas do canal
Enquanto a atual MTV foca a linha 'Namoro na TV' em pegações entre héteros sarados e jovens, a antiga MTV, sem dúvida mais progressista, só pisava nesse terreno se fosse para abraçar uma variedade maior. O 'Beija Sapo', com Daniela Cicarelli, foi o primeiro programa do gênero a receber candidatos interessados no mesmo sexo
Ainda na antiga MTV, a vanguarda saltava aos olhos com o 'Ponto P', programa criado em 2004, com Penélope Nova respondendo a dúvidas sexuais de telespectadores, sem rodeios ou eufemismos. Entre um comentário e outro, a conversa era permeada por informações úteis aos cuidados com saúde e prevenção. A emissora também deu voz a Jairo Bauer, psiquiatra que falava a linguagem dos jovens para informar sobre sexo.
Na MTV atual, Ricardo Gadelha e Ciro Sales posam de conselheiros - mais do campo sentimental e comportamental do que sexual, digamos assim, em uma versão nacional do "Cat Fish". O programa é um dos pontos altos da emissora, na TV e na plataforma sob demanda, a MTV Play
O 'VMB' é certamente a maior lacuna da nova MTV, em relação à antiga. Grande premiação do videoclipe nacional, o evento anual era um acontecimento para o meio musical (e fonográfico, hoje uma indústria profundamente esvaziada pelos downloads, spotfy e afins). O VMB reunia representantes de todos os gêneros em uma grande festa. As inovações e ousadias ali apresentadas pautavam outras premiações de música e a transmissão da cerimônia, ao vivo, funcionava com perfeição jamais atingida por qualquer outro canal (exceção feita a 2004, quando Caetano, diante de uma falha em sua apresentação com David Byrne, bradou: 'Emetevê, bota essa porra pra funcionar'
A indústria fonográfica que ajudava a botar de pé o 'VMB' pode ter se esvaziado, mas o videoclipe não morreu, como endossa a própria faixa diária do canal atual, 'MTV Hits', agora com participação da influenciadora digital Becca Pires.
O 'Comédia MTV', da gestão da Abril, fez brotar na TV uma geração de novos comediantes, com Tatá Werneck e Marcelo Adnet na linha de frente, mais Dani Calabresa, Paulinho Serra, Bento Ribeiro e, entre outros, Daniel Furlan, que participa do 'Lady Night' de Tatá no Multishow e da série 'Samantha!', da Netflix
Na MTV atual, a comédia não pode ser ponto forte, já que esse segmento fica reservado ao canal Comedy Central, da mesma Viacom. Mas, já que a Viacom se tornou sócia majoritária do Porta dos Fundos, o maior portal de vídeos de humor do Brasil e um dos maiores do mundo, não custa nada levar à programação os curta-metragens já conhecidos pelo YouTube, e é desse bom material que vive o riso da atual MTV
A MTV aberta, em seu último respiro, levou ao ar a ótima série "A Menina Sem Qualidades", do premiado diretor Felipe Hircsh, que assinava também o roteiro, com Renata Melo e Marcelo Backes. Protagonizado por Bianca Comparato e Rodrigo Pandolfo, o enredo aborda a capacidade desses jovens de subverter regras sociais e testar os limites das convenções.
Atualmente, a MTV Brasil produz "Feras", sua segunda série como canal pago. A história gira em torno de um rapaz beirando os 30 e recém-separado que se depara com novos comportamentos na arte do namoro ou só do sexo. Estreia em novembro. É a segunda série do canal, que produz agora uma nova temporada de "Perrengue", primeiro título de ficção da gestão da Viacom.
É claro que faz falta, para a atual MTV, contar com a força de uma indústria fonográfica que já não existe mais, mas uma herança louvável da velha MTV são os shows acústicos caprichadíssimos que fizeram diferença para a carreira de seus protagonistas e para o repertório nacional: Cássia Eller, Gilberto Gil, Titãs, Kid Abelha, Lobão, Paralamas do Sucesso, Rita Lee e tantos outros trabalhos primorosos ficaram dessa leva. Até Roberto Carlos teve o seu, apesar de a Globo, à época, ter vetado a exibição do programa.
Parece paradoxal dizer que falta à nova MTV o tom vanguardista da velha MTV. Por mais que o mundo tenha mudado, o canal aberto foi um celeiro de talentos do qual a MTV fechada não chega nem perto. Sabíamos falar de sexo com mais utilidade, mais pluralidade e menos oportunismo, e tínhamos um incentivo à produção musical que inexiste agora. O pior, nisso tudo, é que o acervo da velha MTV continua repousando no velho edifício da Alfonso Bovero, sem destino certo. Pertence à Abril, que não vai lá buscar o seu tesouro nem decide doá-lo a uma Cinemateca ou algo que o valha. E lá se vão cinco anos que a lojinha lá fechou, sem que o estoque merecesse qualquer atenção.
Cristina Padiglione

Cristina Padiglione