Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Coautor de ‘Babilônia’ fala sobre frustração de Gilberto Braga com a Globo

Gilberto Braga e a equipe de 'Babilônia': os autores Ricardo Linhares e João Ximenes Braga, e os diretores Dênnis Carvalho e Maria de Médicis, no lançamento da novela. Foto: João Miguel Jr./Divulgação

Procurado pelo blog para falar sobre os últimos trabalhos de Gilberto Braga, João Ximenes Braga, que escreveu uma fileira de novelas com o veterano, pediu-me alguns dias para digerir a notícia de sua morte, na terça-feira (26).

Nas nossas trocas de mensagens de lá para cá, contou que Gilberto tentou a todo custo evitar que seu último trabalho ficasse marcado pelo fracasso de “Babilônia”, novela que ele assina com o veterano e com Ricardo Linhares, alvo de grande intervenção da direção da Globo na ocasião, à revelia de seus criadores.

Fizeram parte desse esforço as sucessivas tentativas de Gilberto de emplacar uma nova novela ou série na emissora, que recusou ao menos três propostas suas nos últimos seis anos.

A seguir, o autor fala  especialmente sobre o episódio “Babilônia” e o que veio a seguir, em um depoimento preparado inicialmente para as suas redes sociais e que me foi destinado, em razão de tê-lo procurado para falar da obra do autor e do material inédito engavetado pela Globo.

Vencedor de um Emmy de novelas por “Lado a Lado”, que escreveu com Cláudia Lages e supervisão de Gilberto, Ximenes pede ainda que a Globo faça uma boa ação em nome do legado do dramaturgo e disponibilize os  roteiros inéditos do autor, inclusive os capítulos originais de “Babilônia”, antes de sua intervenção, ou faça uma doação à Biblioteca Nacional.

Eis o que ele diz:

“Fiquei afastado das redes esta semana por motivos óbvios. Não via sentido em dividir a tristeza pela perda aqui, muito menos em fazer homenagem. Foram quatro décadas e meia como espectador, subordinado e colega. Trabalhei com ele em cinco novelas (ele foi supervisor de “Lado a Lado” e há uma outra de que falarei adiante) e uma minissérie. Não há homenagem que eu possa fazer que caiba em rede social. Quero falar de outra coisa.

Em 2015, quando voltei da viagem de férias após “Babilônia”, ele me convocou à casa dele. Fui recebido no quarto, numa cama reclinável, tipo de hospital. Ele não estava bem de saúde, mas lúcido e muito deprimido com o fracasso de “Babilônia”, que até hoje é o pior ibope do horário.

Não ouso dizer que antecipasse sua morte, mas naquele dia me disse textualmente que não queria encerrar sua carreira com um fracasso e queria voltar a trabalhar logo para recuperar seu prestígio. Pode parecer irrelevante lembrar de um fracasso neste momento em que todos os homenageiam pelos sucessos. Mas superar esse fracasso era importante PARA ELE.

Passaram-se seis anos e sinto a urgência de pôr os pingos nos is: o fracasso artístico e de audiência de “Babilônia” não pode ser atribuído a Gilberto e sim à intervenção mal intencionada que destruiu completamente a espinha dorsal da novela. Não entrarei em detalhes sobre essa destruição neste texto, pois o fiz há poucas semanas num depoimento por escrito para a biografia de Gilberto que está sendo escrita por Mauricio Stycer. Naquele depoimento conto com detalhes tudo que ocorreu e espero, assim, fazer justiça para a memória dele.

Isto dito, tenho zero esperança de que alguém venha a público assumir que o fracasso de “Babilônia”, novela que em suas duas primeiras semanas tinha problema de Ibope mas um prestígio junto à crítica além do habitual, mesmo comparado com outras novelas do Gilberto, seja responsabilidade da intervenção, e não dele e de sua equipe.

Mas eu acreditava que o livro seria publicado com Gilberto ainda vivo, e que esses pingos nos is sobre “Babilônia” lhe trariam alguma paz neste quesito. Não foi possível, e surgiu uma outra urgência.

Naquele encontro em 2015, Gilberto me convocou para dois projetos. Primeiro, uma minissérie e, mais adiante, uma novela das onze cuja ideia me entusiasmou bastante: ele queria revisitar “Brilhante”, que havia sido tão censurada pela ditadura militar que ficou incompreensível, e refazer a história como se deveria.

A minissérie era sobre Elis Regina e, apesar de os seis capítulos entregues, nunca foi produzida porque o filme “Elis” chegou primeiro. Já a novela das onze passou a ser muito mais que um simples remake de “Brilhante” e ganhou outro título, “Intolerância”. Teve seus 60 capítulos escritos e entregues, mas foi sucessivamente adiada e por fim, cancelada, pelas mesmas forças que destruíram “Babilônia”.

Gilberto era resiliente. Mesmo diante disso tudo, não desistiu. Voltou a trabalhar – já sem mim – numa adaptação de “Feira das Vaidades” para as 18h, com Denise Bandeira. Ele não queria, de forma alguma, encerrar sua carreira com o fracasso de “Babilônia”. Um fracasso que, repito e reforço, não pertencia a ele, mas ao interventor. Mas “Feira das Vaidades” foi cancelada este ano, segundo ele me disse, porque diante da crise da pandemia a emissora não mais faria produções de época.

No mesmo telefonema em que me contou isso, disse que lhe encomendaram uma novela das nove e perguntou se eu achava que “Intolerância” poderia ser adaptada para o horário.

A nova urgência que tenho é fazer um apelo público à TV Globo para que disponibilize os capítulos prontos de “Intolerância”. Se possível, até os cerca de 80 capítulos que escrevemos de “Babilônia” antes da intervenção, pois a “Babilônia” que vocês viram não chega aos pés da “Babilônia” que concebemos. Pode ser num livro, no site do Memória Globo, ou uma simples doação à Biblioteca Nacional, para que fãs e pesquisadores possam conhecer a produção do Gilberto de 2015 para cá.

É o mínimo a fazer com a memória de Gilberto. E tenho certeza de que ele gostaria disso. Em seu último telefonema para mim, ele ainda insistia que que queria  fazer um nova novela para não encerrar sua carreira com o fracasso que lhe foi imposto.”

 

 

P.S. Na publicação original deste post, citei “mágoa” no lugar de “frustração” no título. Mas, alertada para o fato de o relato de Ximenes não mencionar a palavra “mágoa” e de este sentimento nem ser muito próprio de Gilberto, achei por bem fazer este ajuste, com o qual Ximenes está de acordo. O uso do termo “mágoa” foi uma conclusão equivocada de minha parte.

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Cristina Padiglione

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