Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Com humor preciso, ‘Filhos da Pátria 2’ resgata era Vargas com frases e gestos atuais

Fernanda Torres e Alexandre Nero como Maria Tereza e Geraldo Bulhosa: de 1822 para 1930/Divulgação

“Acabou a mamata.”

“Esse é um país que vai pra frente…”

“Enquanto se discute nas ruas se foi golpe ou não…”

“Tchau, querida”

“Nós, os homens de bem, não temos nada a temer.”

“Mas pode tirar um presidente assim, só porque o povo quer? Amei isso!”

“Estudou filosofia, essas coisas do passado…”

“Essa moda de julgamentos apressados ainda vai nos colocar em maus lençóis”

“O Brasil conquistou a sua democracia há tão pouco tempo pra abrir mão dela assim…”

“É uma parceria público-privada” (em cena de proposta de propina entre empresário e funcionário público)

“Meninas vestem rosa, meninos vestem azul!”

Afinal, estamos em 2016? 2019? Quando?

Não, 1930, no primeiro dia da Era Vargas, quando Maria Tereza (Fernanda Torres), mulher do medíocre funcionário público Geraldo Bulhosa (Alexandre Nero) sai às ruas batendo panelas, toma chimarrão, elogia os militares e até faz gesto de quem aponta um fuzil para cima, celebrando as armas de fogo, como aquela imagem clássica de Jair Bolsonaro em mais de um palanque.

As frases acima são de um único episódio da 2ª temporada da série “Filhos da Pátria”, de Bruno Mazzeo, que estreia na Globo em 8 de outubro. Com precisão cirúrgica na abordagem do humor para instigar reflexão e crítica sobre os problemas do país, o enredo vai muito além da mera questão moral que torna raso aquele debate sobre corrupção, levando muita gente a achar que bater panela é lutar pela democracia.

Em uma narrativa inédita, pelo menos dentro do que se conhece, a família Bulhosa se transporta dos primeiros dias pós-Independência do Brasil, época da primeira temporada, para o início da Era Vargas. Ali estará o mesmo funcionário público que pode até roubar, por pura inércia, por pressão do chefe corrupto (Pacheco/Matheus Nachtergaele) e da ressentida mulher, Maria Tereza, que está sempre tentando fazer parte da alta sociedade.

Acompanham a cena os dois filhos,  Catarina (Lara Tremouroux) e Geraldinho (Johnny Massaro). Lucélia (Jéssica Ellen), que era escrava em 1822, agora é empregada da família. “Antes a gente dormia na senzala, agora dorme na casa grande”, ela dirá.

Domingos (Serjão Loroza), que também era escravo na primeira temporada, agora vive de vender seus sambas por poucos vinténs a branquelos engomados como o empresário que lhe paga tão pouco por uma composição à beira do balcão, no primeiro episódio, em uma participação divertida de Paulo Miklos.

A preservação do caráter de todos eles 100 anos depois endossa o quanto o país está habituado a repetir os mesmos erros e evidencia a nossa incapacidade de avançar em questões sociais ou na redução da desigualdade. Para o êxito da piada, esse diagnóstico dói ainda mais quando se ouve Geraldo, Maria Tereza, Catarina, Geraldinho, Lucélia e outros personagens repetindo frases e gestos atuais.

Tudo se encaixa na permanente esperança de um país que está sempre repetindo: “agora vai!”

Bruno Mazzeo. Foto: Estevam Avellar/Divulgação

“A gente vive falando ‘Agora vai!’ Como dizia o [Carlos Heitor] Cony, ‘o Brasil é o país da grande véspera'”, disse Mazzeo ao TelePadi durante a apresentação da série a um grupo de jornalistas no Palácio do Catete, no Rio, onde grande parte das cenas da vez foi gravada.

“Ou, como diz o Millôr [Fernandes], ‘o Brasil é o país do futuro sempre’. Como A história do Brasil se repete, é a cobra mordendo o próprio rabo, são inúmeros os exemplos de ‘agora vai’: o descobrimento, a chegada da Corte portuguesa, a Independência, a República, Getúlio,  Estado Novo, golpe militar, Collor, Lula, Bolsonaro, sempre ‘agora vai’, a gente sempre escolhendo heróis e repetindo as mesmas coisas”, completa o autor.

Dito assim, parece que não nos sobra motivos para rir, mas é na desgraça que se pode fazer troça. “Espero que a série possa contribuir um pouquinho só que seja para que a gente repita menos a história. Vai me trazer menos material de humor, mas vai ser melhor”, arremata Mazzeo.

A ideia de saltar períodos históricos para nos trazer um espelho de humor à repetição das mazelas já anima muita gente a fazer uma terceira temporada, quem sabe nos anos JK, ali pelos dias da construção de Brasília? Material para o script não falta.

Nesta segunda safra, os filhos, mais maduros, trazem outras questões à tona. Catarina, mais responsável, estará voltando de uma temporada em São Paulo, de onde traz reflexões sobre feminismo e literatura, para a ira da mãe, que busca um “bom casamento” para a filha. Geraldinho, sempre oportunista, é o bobinho que mata aula e engana os pais. “Aos poucos”, diz o texto de apresentação do personagem, “as frustrações trazidas por suas próprias inaptidões se transformam em uma agressividade cega que o levam a se aproximar de uma perigosa ideologia da época”. Seria o nazismo? Alguma referência aos tempos atuais?

“Acho que a gente não evoluiu muito como sociedade, inclusive nesta temporada a gente retrata muito isso, na questão da Lucélia, na relação da empregada com a patroa e os seus direitos”, diz Mazzeo. “A Nanda representando essa elite que está sempre encabeçando, a questão da Catarina com a posição da mulher, isso é uma coisa que a gente fala de 1930, mas parece que é hoje, a mulher continua ganhando menos que o homem, quase cem anos depois. Acho que todo mundo ali na série tem uma identificação hoje, todos ali continuam representados, isso é o mais legal como dramaturgia: poder fazer essa analogia.”

 

 

Observação: A jornalista viajou ao Rio a convite da Globo.

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