Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘Um Lugar ao Sol’, frases, temas e personagens: o que fica da novela?

Cauã Reymond, de volta à identidade de Christina, e Juan Paiva, o Ravi, na última cena de 'Um Lugar ao Sol' / Reprodução

À parte o anticlímax do final da história e os equívocos de caracterização que tentaram ilustrar a longa passagem de tempo do último capítulo, não foram poucas nem disfarçadas as defesas que este blog fez de “Um Lugar ao Sol”, a novela de Lícia Manzo que terminou nesta sexta-feira (25) na Globo, com a menor audiência do horário.

Considere-se sempre que a produção foi feita sob mil privações impostas pela pandemia, impedindo a interação do púbico com a obra, que já estava fechada quando estreou, e a abordagem mais demorada de vários conflitos e emoções que se resumiram de modo tosco nesta reta final.

Dito isso, vamos às frases dignas de serem guardadas na memória e fiquemos com a parte não-perecível de uma novela: as reflexões que ela nos deixa. Reproduzo aqui alguns dos muitos diálogos excelentes do enredo:

  • “Parece uma folha de papel numa ventania”
    De Felipe (Gabriel Leone) a Rebeca (Andréa Beltrão) sobre Júlia (Denise Frata), sua mãe, adicta.
  • “Nós, homens, a gente disfarça, esconde o que sente, procura uma via de fuga, às vezes o álcool, às vezes uma outra mulher –uma que não conheça a gente profundamente.”
    Santiago (José de Abreu) a Christian (Cauã Reymond).
  • “É bom dormir em cima do problema. Quando a gente não encontra solução, a solução encontra a gente.”
    Noca (Marieta Severo) a Lara (Andréia Horta).
  • Ela [a TV] é responsável por tudo. Querem enfiar tudo pela goela da gente, na cabeça da gente, na cama da gente, na casa da gente, na vida da gente: homem com homem, mulher com mulher, gata com lebre…”
    “Cancela também a assinatura do jornal, e manda cimentar a janela, assim você não olha mais pro mundo, pai.”
    Diálogo entre Domício (Luiz Serra) e Breno (Marco Ricca)
  • “Queria ver se era uma mulher insistindo assim. Iam dizer que era uma largada, uma carente, uma chata. Agora, só porque é homem, aí pronto, é um ‘galanteio irresistível’. Ah!”
    Noca (Marieta Severo) sobre a insistência de Aníbal (Reginaldo Faria) com ela.
  • “Acho que a maneira mais segura de envelhecer é ser homem, porque se eu fosse um cara de 50 anos, a gente nem ia estar falando sobre isso. [..] Envelhecer é uma carta branca que é dada ao homem, não à mulher”
    Rebeca (Andréa Beltrão) a um repórter sobre “envelhecer bem”.

 

Sempre com sensibilidade e delicadeza, “Um Lugar ao Sol” cutucou o espectador acerca de questões como etarismo, gordofobia, inclusão social de adultos com deficiência, menopausa, misoginia, machismo, feminismo, racismo, união homoafetiva, adoção, falsidade intelectual, dependência química, Alzheimer, feminicídio e violência doméstica, além daquela síndrome sem nome de garota mimada mal resolvida, com inveja da mãe, personificada por Fernanda Marques em Cecília, a persongem mais chata da novela.

Mas até Rebeca, de Andréa Beltrão, insensada no início da história, tropeçou nas suas ranzinzices, para a glorificação do melhor personagem masculino, Felipe, vivido por Gabriel Leone.

Andréa Beltrão e Gabriel Leone / Reprodução

Várias das temáticas abordadas por Lícia não são inéditas em folhetins, mas o enfoque por ela dado a cada questão trouxe pontos absolutamente novos para o espectador de novela.

É o caso do alcoolismo de Júlia, lindamente defendida por Denise Fraga. Filha de uma terapeuta publicamente glorificada pela especialização em dependência química, ela expunha a fragilidade de Ana Virginia, irrepreensível na interpretação de Regina Braga. A profissional que parecia dominar o assunto na esfera de seu consultório e de seus livros era um fracasso como mãe de alguém naquelas mesmas condições.

Apesar de contar com o olhar feminino, não só de Lícia, mas de uma equipe majoritariamente composta por mulheres, como Marta Góes, Cecília Giannetti e Dora Castellar, além de Leonardo Moreira e Rodrigo Castilho, a trama soube dar uma leitura nada maniqueísta aos tropeços de Breno (Marco Ricca) em sua masculinidade tóxica. É fundamental distinguir esse sujeito cheio de boas intenções, mas capaz de errar muito, com a violência patológica de Roney (Danilo Grangheia), que matou a ex-mulher, Stephany (Renata Gaspar), ou da canalhice asquerosa de Túlio (Daniel Dantas).

PARA ESQUECER

Repleta de boas histórias paralelas, a novela sofreu um certo descompasso entre tantos acontecimentos interessantes à volta do argumento central, até porque Christian não tinha mais para onde ir com sua farsa. Talvez fosse o caso de a máscara dele ter caído bem antes do último capítulo, a fim de dar mais agilidade ao mês final do folhetim. E agilidade não significa pular etapas com legendas do tipo “meses depois…”, privando o o espectador de ver como as coisas de fato aconteceram.

O anticlímax do final esteve mais na narrativa do que nos acontecimentos. Quando escrevia suas novelas, Manoel Carlos dizia que os spoilers publicados pela imprensa especializada não atrapalhavam a audiência, pois o público não quer apenas “saber o que vai acontecer”, mas sobretudo quer saber “como vai acontecer”. “Um Lugar ao Sol” pecou forte neste ponto.

Após ver Lara (Andréia Horta) sofrendo tanto à espera do fim do coma de Ravi (Juan Paiva), o público não presenciou a emoção de vê-lo “acordar”. Mas o pior foi ter de conferir a familia de Santiago (José de Abreu) comentando, sem sobressaltos, a descoberta sobre a verdadeira identidade de Renato. Esperamos meses por um momento que se transformou num pequeno jogral.

No próprio julgamento, não ouvimos a voz de Christian. Nem uma tentativa dele de se redimir, de se desulpar, de se torturar por uma trajetória tão torta. Nada. Bárbara, alvo de grande atuação de Alinne Moraes ao longo da novela, mal se pronunciou.

No questio técnico, vale gongar o figurino, que abusou de peças de inverno sob a alta temperatura do Rio, com golas rolê para Rebeca e blusas de lã para Aníbal (Reginaldo Faria). Observe-se também que mesmo exibindo mais de um figurino a cada capítulo, com um zilhão de roupas no armário, Rebeca e sua irmã Bárbara repetiram incontáveis vezes o mesmo colar, a primogênita com um acessório de gomos de corrente, e a caçula com um arco de metal, ambos bastante chamativos.

PARA GUARDAR

Se a forma desse final foi sofrível, de novo considerando as dificuldades da equipe para gravar durante o período crítico da pandemia, as abordagens, o enredo e os personagens merecem ficar na memória do público. Das grandes atuações em personagens que deixam ótimas referências sobre os assuntos por eles abordados, vale sublinhar Ana Beatriz Nogueira, Denise Fraga, Alinne Moraes, Andréa Beltrão, Regina Braga, Marco Ricca e Fernando Eiras.

Convém sublinhar também as atuações de Cláudia Missuri, na pele da irmã de Breno, e Inez Vianna, a Avani, a coordenadora do orfanato onde cresceram Ravi e Christian. Foi de Inez uma das cenas mais comoventes do último capítulo.

Da galeria de personagens, abraço também Felipe (Gabriel Leone), Nicole (Ana Baird), Noca (Marieta Severo), Ravi (Juan Paiva), Paco (Otávio Müller) e Mel (Samanta Quadrado).

Por fim, a discussão central da história, sobre alguém que se sente em desvantagem na vida e deseja ser outra pessoa para sanar seus males, ganhou uma profundidade muito superior à média dos argumentos lançados em telenovelas. Mal assume o lugar do irmão, Christian se vê em maus lençóis, tendo de arcar com pecados muito maiores do que os seus originais.

Inicialmente herói da trama, ele tem boas justificativas para assumir o lugar do irmão, mas não calcula os riscos de longo prazo nem o prejuízo de abrir mão de seus valores. É chantageado, cede aos vilões para fugir da guilhotina, e vai se enrolando. Preterido pelo sogro no comando da empresa, resolve retomar o romance com a mulher de sua vida, sem que ela saiba que ele é um impostor.

Mas assume de vez o papel de carrasco ao deixar Lara, de novo, em troca da presidência da rede de supermercados do sogro, assumindo, então, o ônus de um casamento ruim em troca de poder. Enterra-se de vez ao ceder a novas chantagens.

A troca de lugar com o irmão é quase uma fábula. Só alguém muito carente como Bárbara poderia não perceber que o marido era outra pessoa, mas a mãe adotiva de Renato, Elenice, menos ingênua, talvez pudesse ter notado algo. Avesso à mulher que adotou seu irmão e o deixou para trás quando bebê, Christian se vale do diagnóstico de Alzheimer precoce dela para revelar-lhe em primeira mão que não é Renato, e essa sequência foi um dos momentos mais comoventes desta reta final. “Você me abandonou e eu agora estou te abandonando”, diz ele à mãe adotiva do irmão, certo de que ninguém acreditárá nela, o que de fato ocorre.

Cauã Reymond teve a difícil missão de ser um Christian que tinha de parecer ser Renato, daí a postura muitas vezes robotizada na atuação, algo que, a meu ver, fazia parte do caráter do personagem. Foi uma missão inglória, mas grande desafio para um ator.

O mundo ideal seria que esta novela pudesse ser refeita sem pandemia, em condições normais de temperatura e pressão, como obra aberta, para que a autora pudesse fazer sua história dialogar melhor com o público e para que o diretor (Maurício Farias) passasse menos sufoco na hora de solucionar algumas questões de produção, impasses que também afetaram a própria construção do enredo.

Mas diante do que temos, temos uma novela que, a despeito da audiência aquém do normal para o horário, deixa ótimas referências de folhetim e de obra capaz de fazer as pessoas refletirem sobre assuntos diversos.

 

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Cristina Padiglione

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