Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘Conheço muitos Brandões’, diz Ilana Casoy, coautora de ‘Bom Dia, Verônica’

Brandão (Du Moscovis) joga molho na própria camisa após a mulher, Janete (Camila Morgado), acidentalmente ter deixado o líquido respingar na roupa dele: 'Se é pra fazer merda, faz direito' , ele diz a ela. / Reprodução

Criminóloga com larga experiência no estudo de serial killers e crimes que chocaram o país, como os casos Nardoni e Suzane von Richtofen, a escritora Ilana Casoy falou ao blog por videochamada com a diretora Izabel Jaguaribe sobre a nova série brasileira da Netflix, “Bom Dia, Verônica”, no ar desde 1º de outubro.

O título vem roubando a noite de muita gente que não resiste em maratonar seus oito episódios. “Conheço muitos Brandões”, Ilana já avisa, ao mencionar que estava em um sítio da região da Serra da Mantiqueira durante a nossa conversa e por isso talvez a conexão falhasse. “Tô no sítio do Brandão”, brincou.

Brandão é o personagem de Eduardo Moscovis, um dos melhores, senão o melhor trabalho do ator até aqui, um admirado tenente-coronel da PM que mantém a mulher, Janete (Camila Morgado, também na sua atuação mais visceral) sob rigorosa vigia, em casa, sem direito a celular e restrições no acesso ao telefone. “Conheço muitos Brandões reais, e aqui é um mato só. Se alguém gritar, ninguém escuta”, ela fala, fazendo referência à locação que é peça-chave do enredo.

A Verônica do título também faz o melhor momento na carreira de Tainá Muller, nossa protagonista, presença que traz força e inspiração para a cena, sob direção artística de José Hernique Fonseca, com produção da Zola Filmes.

Ilana reconhece que sua bagagem de vida real em delegacias, onde ela está longe de ser uma visitante, faz diferença no produto final, sem falar na expertise de seu parceiro na criação do livro, Rafhael Montes, com quem escreveu também a série, em parceria com outros roteiristas. “A bagagem vem toda, eu conheço muitos Brandões, muitas Janetes, muitas Verônicas, sei que eu posso trazer mais do que uma pessoa que nunca esteve numa delegacia e nunca conversou com as pessoas. É claro que sou uma raridade, mas é claro que isso traz um outro entendimento. Quando você vê um crime na TV, você faz um recorte daquela pessoa, mas quando você o entrevista e avalia todas as etapas do processo, a compreensão é outra.”

VIOLÊNCIA CONTRA MULHER

Antes de apresentarmos os pilares desse enredo, é preciso dizer que “Bom Dia, Verônica” opera em uma sequência de grande suspense com requintes de muita violência útil, digo, nada gratuita. A série tem um potencial fora do comum para provocar a percepção, com discussão e reflexão, sobre a violência doméstica e violência.

Não será preciso ver no parceiro a psicopatia de Brandão para alcançar seus similares na vida real. Muitas frases dele foram retiradas de depoimentos de mulheres vítimas de violência. Ilana afirma, no entanto, que nenhum daqueles personagens nasceu a partir de um modelo semelhante. “Eles são uma somatória de pessoas e relatos”, conta.

“A gente atacou um lugar de fala que eu acho muito importante  que é a violência de gênero, e a Netflix não tinha visto ainda esse assunto, que encampou e trouxe para a vida real, com Disque 190, Wanna talk about It e várias ONGs dando acolhimento para denúncias”, diz Ilana, citando os avisos que convidam espectadores a denunciarem casos de agressão ao final de cada episódio.

“Eu torço muito para que essa reflexão chegue até o público por meio do entretenimento. É um lugar de fala e de escuta do público que foi difícil de alcançar. Aqui, a violência não é para entreter, é para discutir, para refletir. Tem roteiros que usam a violência para gerar gancho bacana, aqui a gente tinha uma preocupação de usar o entretenimento para refletir”, reforça.

Izabel endossa: “Veio num momento muito oportuno, sobretudo dessa forma que  a Ilana colocou: não é pra enaltecer, é para denunciar, o próprio link depois de cada episódio traz um ambiente que vai acolhendo as vítimas, para dar voz a elas. É melhor falar sobre isso de uma forma diferente.”

Nem por isso estamos diante de uma história para meninas, apesar de o ponto de vista das abordagens encontrar uma empatia nessas mulheres que cronicamente os homens não enxergam. É certo que eles tenham muito a aprender ao notar a forma como Verônica sublinha os equívocos de Janete e das mulheres vítimas do Boa Noite Cinderela. Do lado feminino, elas ainda guardam fortemente as referências de uma educação ingênua de compensações: rezar para obter a realização de um sonho; obedecer o marido para merecer dele um tratamento que ele estabelece como bom, segundo seus parâmetros, e chamar para si a responsabilidade de gerar filhos, como a culpa por não pari-los. “Você ainda vai conseguir me dar um filho”, diz ele, sem se dar conta da distorção aí explicitada.

OS recados são organicamente transmitidos para ambos os sexos no combate ao machismo estrutural também consentido por elas. O único senão é a desproporção do comportamento de Brandão, em quem a maioria dos homens não haverá de se reconhecer justamente por ele ser um psicopata, sujeito de fato muito fora da curva.

Mas nem só da psicopatia são feitos os Brandões que inspiraram Ilana. “A cena em que ele derrama molho na própria camisa e diz que se é pra fazer merda, que ela faça direito, veio do depoimento de uma Janete real, aquilo é literal”, conta a criminóloga. Izabel intervém para dizer que considera a sequência, de onde tiramos a imagem que ilustra este texto, extremamente forte.

Sem querer, ela respinga na camisa dele o molho colocado no prato. Imediatamente se desculpa. Mas ele se zanga: “Na vida, a gente tem que fazer as coisas direito. Se é pra servir, tem que servir direito. Se é para fazer merda, faz direito”, ele fala, rasgando a camisa em seguida e dizendo que viu no aparelho telefônico que ela tentou falar com sua irmã, apesar da contrariedade dele a qualquer conexão da mulher com quem quer que seja. “Contou pra ela que você fracassou de novo?”, pergunta Brandão, em referência a mais um aborto expontâneo sofrido pela mulher.

“Acho essa cena incrível”, diz Izabel, “inclusive é mais opressora essa situação que se cria ali do que as loucuras masters dele, porque esse Boderlaine [síndrome] é perto do usual, parece que corta o ar da pessoa”.

“Quando você lida com mulheres que sofrem violência de gênero, é impressionante como cada uma tem uma percepção sobre o que é violência, é incrível o que você lê em um relatório desses preenchido pela vítima:
_ ‘Ele já te bateu?’
_ ‘Não’
_ ‘Já te empurrou?’
_ ‘Ah, sim’.
_ ‘Já deixou hematoma?’
_ ‘Sim’

Vi um questionário respondido por uma vítima que marcou um x, hesitando, diante da pergunta se ele já tentou afogá-la. Como alguém hesita diante de uma questão como esta? Você responde ‘sim ou ‘não ‘. É fundamental mostrar o que é violência para cada mulher, importante que mulheres ali se reconheçam e vejam que aquilo não é normal”, completa Ilana.

A presença de várias mulheres por trás das câmeras foi essencial para que este olhar ganhasse a delicadeza e contundência necessárias em cena, sem falar no protagonismo feminino estampado no título. Some a isso o fato de o diretor-geral ser filho de quem é, Rubem Fonseca, consagrado escritor de romances policiais, morto em abril, cuja obra já havia sido bem explorada pelo filho em “Mandrake”, série e telefilme feitos para a HBO.

As cores fortes adotadas pela oprimida Janete nasceram de criações entre a figurinista, Marina Franco, e a própria Camila Morgado. “São camadas de criação”, conta Izabel. “Aos poucos, quando tudo vai dando cor, a gente foi encontrando essa composição. Já na pesquisa por locações, quando a gente viu aquela casa [de Janete e Brandão], enxergou lá um potencial muito forte, uma coisa gritante de estética”.

Ao contrário do breu do sítio para onde ele leva suas vítimas, a casa do casal é toda emoldurada por cores fortes, com azulejos azuis claros e vasta invasão de luz durante o dia. Cenografia e figurino subvertem os clichês que talvez neutralizassem a paleta daquele contexto.

Janete pinta as unhas de azul vivo, é capaz de sair à rua de botas brancas, até porque a personagem parou no tempo e mal se comunica com o mundo externo, dedicando seu ócio a palavras cruzadas e a alguns poucos canais de TV. É um deles que a leva até Verônica, que esquecerá da própria vida, marido e filhos, para salvar Janete.

“Acho que a Marininha teve uma contribuição muito importante, que foi não cair no clichê, na ideia de que a pessoa que vem do interior [caso de Janete] não pode ser pop.  De repente, ela pode estar fragilizada diante daquele carrasco, daquele louco, mas ela tem um lado pop”, completa a diretora.

“O Du também, eu tinha um medo muito grande de ele cair no bandido, e ele foi maravilhoso”, cita Ilana. “Ele conseguiu fazer ali um homem muito complexo. Senão ninguém iria se identificar. Agora já ouvi conversa de outras pessoas dizendo:’essa fala aí é do Brandão’.”

“É preciso cuidar, entender se a violência está presente e de que forma. Ofender e humilhar são violência. E tem uma parte que é: reaja, peça ajuda, e um alerta vermelho quando sua vida está em perigo, que sua vida está em risco, que você pode ser mutilada, espancada. A Justiça e a polícia estão preocupadas, mas as mulheres precisam saber disso. Tem o machismo estrutural, a violência estrutural, e quanto mais gente envolvida, mais rápido vai ser esse processo.”

A história vem do livro homônimo escrito por Ilana Casoy e Raphael Montes, lançado, inicialmente, sob o pseudônimo de Andrea Killmore. “A gente nunca quis ser a Elena Ferrante”, explica Ilana, referindo-se à escritora italiana, autora de best sellers, cuja identidade é secreta há anos. “O Rapha, que é um escritor sempre bem recebido, queria testar a reação das pessoas a uma história nova, e eu também nunca tinha escrito ficção e achei bom”. A identidade real foi revelada um ano após a publicação da dupla, que também trabalhou em parceria nos filmes sobre a morte do casal Richtofen.

O ponto de partida de “Bom Dia, Verônica” é um suicídio testemunhado pela protagonista na delegacia de homicídios, onde ela trabalha como escrivã. Uma mulher, vítima do golpe Boa Noite, Cinderela alcançará uma arma que ficou no chão. O revólver pertencia ao pai de uma vítima de estupro seguido de morte que segundos antes tentara matar o suspeito do crime, que acabava de chegar ao local, algemado.

O episódio mexe profundamente com nossa heroína, que acabará mostrando eficiência muito maior do que a função que lhe cabe e será constantemente boicotada por Anita (Elisa Volpato), personagem que não existe no livro e foi criada especialmente para a série.

O delegado chefe, Carvana, vivido por Antônio Grassi, guarda uma referência particular: trata-se de uma homenagem a Hugo Carvana, célebre intérprete do repórter policial Waldomiro Pena, protagonista do seriado “Plantão de Polícia”, produção da Globo dos anos 1980.

Ciosa da lógica criminal, Ilana ainda contou com a consultoria do filho, Marcelo Feller, advogado criminalista. “Tivemos uma preocupação em saber o que podia e o que não podia fazer em relação a questões de Justiça, tudo a gente ligava pra ele. A gente também tem liberdade de criação, mas é uma liberdade crível”, reforça.

Mais do que crível, e de fato muito real, é o constrangimento da mulher que chega a uma delegacia para denunciar violência. “O que eu queria é avisar: ‘prestem atenção em sinais de violência’. A gente quer mostrar como ela vai escalando essas etapas que podem culminar com o pior. Na medida do permitido, esses homens vão escalando etapas de agressão, não ficam só na primeira ou segunda, é um processo, e aí é que temos um problema do timing dessa mulher, de que momento ela vai perceber que precisará de ajuda”, diz Ilana, logo citando o recente do caso de Ilhéus, em que um sujeito foi detido após um vídeo que o mostra agredindo sua mulher, mas depois do depoimento foi liberado pelo delegado.

O LIVRO

“Quem adaptou foi o Raphael”, diz Ilana, “mas ele é o criador e fez essa adaptação, sempre conversando muito. Ele diz que adaptar o livro é uma traição, e a traída era eu, só que não. O bonito é que nunca ele perdeu ao essência do livro. O livro tem uma linguagem literária, sofreu modificações, e o que eu ouvi o tempo todo foi: ‘Desapega do livro, de tudo, de estilos de personagens’. Essas adaptações são pensadas, a gente nem lembra quem deu a ideia do que. A sala de roteiro virou uma equipe muito forte.  Você entra numa sala de roteiro e passa o dia lá, discutindo o texto.”

 

Ficha técnica
Gênero | Thriller
Baseada no livro de | Ilana Casoy e Raphael Montes
Episódios | 8 de 45 min
Diretor-geral | José Henrique Fonseca
Diretores | Izabel Jaguaribe, Rog de Souza, José Henrique Fonseca
Roteiristas | Raphael Montes, Ilana Casoy, Carol Garcia, Davi Kolb e Gustavo Bragança
Produtores | Eduardo Pop, Beto Bruno e José Henrique Fonseca
Produtores executivos | José Henrique Fonseca, Eduardo Pop, Ilana Casoy e Raphael
Montes
Diretor de fotografia | Rodrigo Monte e Flávio Zangrandi
Production Designer | Marlise Storchi
Editores | Sergio Mekler, Tainá Diniz e Yan Motta
Costume Designer | Marina Franco
Compositores | Dado Villa-Lobos e Roberto Schilling
Diretora de elenco | Marcela Altberg
Estrelando | Tainá Muller (Verônica), Eduardo Moscovis (Brandão), Camila Morgado (Janete),
Elisa Volpatto (delegada Anita), Antônio Grassi (delegado Carvana), César Melo (Paulo), Silvio
Guindane (Nelson), Adriano Garib (Prata), Alice Valverde (Lila), DJ Amorim (Rafa), Johnnas
Oliva (Lima), Sacha Bali (Gregório), Aline Borges (Tânia), Cassio Pandolfi (Julio Torres), Pally
Siqueira (Deusa), Juliana Lohmann (Paloma), Lucélia Pontes (Cícera), Raissa Xavier (Jéssica),
Rosa Piscioneri (Regina), Renan Duran (Lucca), Roberta Santiago (Eneida)
Produtora | Zola Filmes para a Netflix
Locação | Rio de Janeiro e São Paulo

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Cristina Padiglione

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