Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Criada por Emicida, ‘O Enigma da Energia Escura’ vale a audiência

Emicida na condução da nova série do canal GNT / Reprodução

O canal GNT leva ao ar nesta quarta-feira (1º), às 23h30, o terceiro episódio da ótima série “O Enigma da Energia Escura”, criada e apresentada por Emicida e seu irmão, Evandro Fióti. Os dois estarão, aliás, no Conversa com Bial desta quarta (1º) para falar exatamente sobre a produção. Se você ainda não deu de cara com a produção, prepare-se para rever os dois episódios anteriores e não perca os outros três que estão por vir.

Com a mesma simplicidade e profundidade investidas na abordagem da negritude em “AmarElo”, documentário da Netflix, o músico apresenta e costura depoimentos, imagens e informações que colocam na mesa o racismo, o orgulho negro, a desigualdade social e todos os caminhos que levam o Brasil a estar entre os 10 países de maior desigualdade do planeta, embora esteja também entre os dez mais ricos do mundo, sendo o único dessa lista com maioria preta.

Cada episódio é comandado por Emicida de uma cabine espacial, em uma galáxia distante que faz alusão direta à origem da cultura hip-hop, quando, nas festas de rua do Bronx em Nova York, nos anos 70, os DJs soltavam as músicas e os MCs versavam por cima dos instrumentais.

Esta relação se dá devido à revolução que o rap causou no mercado da música, levando autoestima e salvando jovens ao redor do mundo, entre eles o próprio Emicida. Na série, ele persegue suas histórias e, para além da música, convida especialistas, intelectuais, ativistas, artistas e pensadores a reconstruir a história do seu, do nosso povo.

O primeiro episódio pergunta “Por que a desigualdade racial é uma grande burrice? Raça e Poder”.

Nesta quarta (1º), o 3º capítulo se dedica a responder o que é raça, como esse conceito levou a uma hierarquização dos grupos sociais e como algumas civilizações passaram a ser vistas como superiores e outras inferiores.

Com participações do pesquisador Weber Góes e das professoras Lia Vainer e Thula Pires, o capítulo mostra ainda de que forma o pensamento eugenista reforça mecanismos e políticas que buscam perpetuar os privilégios da branquitude, algo que é feito por meio de tensão racial, apagamento e até criminalização de elementos da cultura, da história e dos corpos negros.

FARAÓ

Paradoxos, dados históricos, injustiças, dúvidas e convicções se cruzam por meio de relatos precisos de artistas, professores, ativistas, músicas e outras manifestações populares, com gráficos muito palatáveis à compreensão da massa. A série documental é bem-sucedida na competência de ensinar sem deixar de entreter, aproveitando todas as ferramentas do que se chama de audiovisual.

É impossível abandonar um filme que se inicia provocando o público com o contagiante refrão “Eu Falei Faraó”, que se tornou um hino do Carnaval brasileiro, na voz de Margareth Menezes. Ela fala sobre o hit, na batida do Olodum, enquanto Emicida sustenta a gigantesca representatividade presente, e nem sempre notada, naquele grito.

A canção, que equivale a uma catarse, norteia o 2º episódio da série, disponível no GloboPlay.

A edição mostra por que os blocos afros da Bahia revelam muito mais sobre as origens dos negros, e o orgulho da cor, do que as aulas de história, inclusive para a própria população negra.

Você há de entender onde o axé da Bahia encontra o hip hop da periferia paulitana, com todas as diferenças estéticas que possam pairar entre os dois estilos, e Emicida mesmo traça a reta desse papo.

Compositor do hit consagrado por Margareth, Luciano Gomes conta que não aprendeu nada sobre África na escola, nada sobre escravidão, “só o básico mesmo”. “Aprendi foi nos blocos afros”, conta. Quando o Olodum lhe encomendou uma música para o Carnaval de 1987 e contou que o tema daquele ano era “Faraó – Divindade do Egito”, confessa, passou uma semana tentando decifrar a ideia, sem qualquer conhecimento sobre Egito.

“O Olodum tem isso: ele dá o script todo do tema pra que a gente possa pesquisar melhor. Na época, realmente, a de Faraó foi muito complicado pros compositores.”

“Ainda hoje é uma das músicas mais tocadas no Carnaval”, continua. “Na época, o Pelourinho era muito mal falado, quem levantou o Pelourinho foi a entidade chamada Olodum.”

“O Pelourinho, como toda diáspora negra, transforma um lugar de dor em um lugar de exaltação de uma cultura, de um lugar onde os negros eram punidos a um lugar onde eles são reverenciados”, nota Emicida. “Pra mim, um garoto de São Paulo, a axé music  era toda música baiana, uma coisa só. Quando fui pra Bahia, depois de muitos anos, já como Emicida, pela primeira vez eu pude ver a história dos blocos afros”, reconhece o cantor e apresentador.

Professor doutor em Administração e ativista do movimento negro, Hélio Santos faz as contas que determinam a distância entre as cores do país: “A desigualdade tem cor, assim como a corrupção também tem.”

O acadêmico sublinha a longevidade infeliz do 14 de maio de 1888, dia seguinte à abolição da escravatura, que de alguma forma dura até hoje. A política de cotas raciais, ressalta, foi a melhor ação afirmativa dada aos negros em mais de um século.

Emicida completa com outro cálculo chocante: se 700 mil ex-escravizados tivessem um pedacinho fértil de terra, usando apenas 2% do território nacional, após a abolição, “nossa história teria sido bem diferente”. Pode apostar que sim.

Mas se “somos maioria, então por que somos minoria?”, questiona a série, quando trata do extrato social inferior a que os negros, maioria no país, estão relegados no Brasil.

“Não é dificil achar na música e na cultura brasileira como um todo, figuras negras e indígenas sendo mais objeto do que sujeito. Me debruçar sobre essa história dos blocos afros é sempre encantador, pois não apenas é lindo cantar sobre uma nova possibilidade de mundo, eles estão recriando isso, e com gente preta segurando a caneta, sendo sujeito da história e não objeto”, conclui Emicida.

Ao resgatar a história do movimento negro na Bahia, a série traça associações também com a ditadura militar e o papel que muitos desconhecem sobre a resistência representada pelos blocos afro. Nesse contexto, é preciso ainda jogar luz sobre uma democracia que veio a seguir, sem contudo honrar seu significado na questão racial.

Desenvolvida por Emicida e Evandro Fióti e produzida por Fióti por meio da Laboratório Fantasma, a série documental é exibida às quartas, às 23h30, e também está disponível no Globoplay.

 

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Cristina Padiglione

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