Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Com 3 episódios já no ar pela GloboPlay, ‘Dois Irmãos’ vale cada segundo

Juliana Paes, no melhor papel de sua carreira na TV, e Matheus Abreu na série 'Dois Irmãos'

Que prazer reencontrar na minissérie “Dois Irmãos” o melhor da dramaturgia feita para a TV no Brasil. Baseada na obra homônima de Milton Hatoum, a adaptação, com texto de Maria Camargo e direção de Luiz Fernando Carvalho, ambos irrepreensíveis em suas funções, nos devolve a vontade de acompanhar uma história em capítulos, com a oportunidade de enxergar na tela os fragmentos quase esquecidos do nosso DNA.

Estamos em Manaus, tão longe e tão perto, tão além do Sul Maravilha predominante no audiovisual, entretidos por ascendências libanesas que primam pelo tom exacerbado, do riso à dor, em contraste com a discrição indígena que ocupa aquela paisagem. A configuração feita de extremos se desenha quase em simultaneidade com os temperamentos opostos dos protagonistas, os irmãos gêmeos Yaqub e Omar, um absolutamente entregue ao exercício do intelecto, atento a suas responsabilidades, trancado na autoproteção de seu mundo; e outro impetuoso, sem controle sobre suas emoções, orgulhoso de uma voracidade que mergulha na ignorância, vaidoso de uma relação edipiana e de falsa soberania. Mimado pela mãe sob o pretexto de ter nascido com pulmão mais frágil, Omar, o Caçula, torna-se sujeito violento, condição conhecida desde os 13 anos, já no primeiro episódio, quando fere o irmão mais velho com um canivete, deixando-lhe uma cicatriz no rosto.

Tudo isso nós já sabíamos desde que Milton Hatoum criou “Dois Irmãos”, em 2000, vencedor do Jabuti (2001) como o melhor livro de Ficção. O que temos agora é essa grande história, bem narrada em prosa e verso, com muita poesia, na tela. Boas histórias, afinal, nem sempre são bem contadas. Aí está um produto que honra com todos os “ais” de Juliana Paes a Zana parida por Hatoum em livro, há 16 anos. Pode-se afirmar, sem pestanejar, que é o melhor papel da atriz na televisão, em um dueto feliz e muito bem trabalhado na sensualidade com Antonio Calloni. As cenas de sexo se esmeram nas sedutoras curvas de Juliana, com alguma brecha para seios, além de peito, perfil e dorso de Calloni, sem resvalar nem de leve em qualquer suspeita de vulgaridade. As sequências que endossam a alta tensão sexual do casal são de uma delicadeza inspiradora e traduzem, no transpirar dos corpos, o grau de libido latente naquela cama que dá origem aos dois irmãos do título e a mais uma filha.

A presença brasileira com ascendência indígena e libanesa naquela geografia, onde a natureza e o comércio se fundem de modo tão visceral, há de aguçar a identidade do telespectador brasilis – mesmo que você jamais tenha pisado em Manaus ou conhecido o contexto daqueles anos que intercalam a 2ª Guerra. Nesse ambiente, a história de dois irmãos tão semelhantes e tão diferentes, porta-vozes de uma rivalidade dolorosa, frutos da predileção materna indisfarçável por um deles – embora não reconhecida pela mãe – poderia ser contada em qualquer lugar do planeta. Daí sua universalidade.

Só para variar, Luiz Fernando Carvalho nos embala com uma trilha sonora à altura dos grandes épicos e nos põe diante de um programa digno de ser chamado de “atração”. É coisa capaz de reverter a subserviência doméstica do televisor. Enquanto a tela se enche com “Dois Irmãos”, vamos correr para fechar janelas e frear os ruídos externos. Vamos ordenar “psiu” para o cachorro e as crianças que ainda estiverem acordadas, vamos pedir silêncio para ver a história de Yaqub e Omar passar, com toda a moldura esculpida pela edição. A julgar pelos três primeiros capítulos, a série vale cada segundo de prostração.

(Aliás, por falar em crianças, tire-as da frente da TV. Há sangue e sexo à vontade, embora não haja um só take gratuito. Tudo tem profunda razão de ser, mas carece de alguma maturidade para ser digerido.)

Antonio Fagundes como Halim na série 'Dois irmãos'

Antonio Fagundes como Halim na série ‘Dois irmãos’

Assim como se deu em “Velho Chico” e nas demais produções com a assinatura do diretor, não há ninguém que envergonhe o elenco, nenhuma discrepância a olho nu. Não há quem faça feio. Ao contrário. Antonio Fagundes, que vive Halim, mesmo personagem de Antonio Calloni, em sua fase mais velha, surge em um ritmo e acento de narrativa tão distintos de seus registros, que precisamos de tempo até identificá-lo como Fagundes. Muito bom. Matheus Abreu, o ator escolhido para fazer os gêmeos antes que Cauã Reymond assuma os papéis, tem mais semelhança física com o ator, hoje, do que o próprio Cauã tinha quando se ocupava lá de seus 18 anos.

Irandhir Santos, Nael adulto, promove uma narração quase sussurrada de toda a história daquela família, na versão de Halim, de quem ouve tudo. “Pra um velho como eu, é bom recordar o que foi bom, lembrar só do que me faz viver mais um pouco, entende?”, pergunta o patriarca, já na voz de Fagundes.

Cioso de um intenso  expediente de preparação de elenco, Luiz Fernando honra a tradição de botar em cena atores que não vomitam frases, que não jogam exclamações e reticências para a torcida à toa. Tudo é conscientemente pronunciado como causa ou consequência do conjunto da obra.

Em duas palavras: não perca.
E, aproveitando, leia o livro de Milton Hatoum.
Estreia na próxima segunda, dia 9, após “A Lei do Amor”, em 10 capítulos de segunda a sexta, por duas semanas.

E já está no ar pela Globoplay, com 3 episódios, para assinantes. Abaixo, uma prévia do que está por vir.

 

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