Com 3 episódios já no ar pela GloboPlay, ‘Dois Irmãos’ vale cada segundo

Que prazer reencontrar na minissérie “Dois Irmãos” o melhor da dramaturgia feita para a TV no Brasil. Baseada na obra homônima de Milton Hatoum, a adaptação, com texto de Maria Camargo e direção de Luiz Fernando Carvalho, ambos irrepreensíveis em suas funções, nos devolve a vontade de acompanhar uma história em capítulos, com a oportunidade de enxergar na tela os fragmentos quase esquecidos do nosso DNA.
Estamos em Manaus, tão longe e tão perto, tão além do Sul Maravilha predominante no audiovisual, entretidos por ascendências libanesas que primam pelo tom exacerbado, do riso à dor, em contraste com a discrição indígena que ocupa aquela paisagem. A configuração feita de extremos se desenha quase em simultaneidade com os temperamentos opostos dos protagonistas, os irmãos gêmeos Yaqub e Omar, um absolutamente entregue ao exercício do intelecto, atento a suas responsabilidades, trancado na autoproteção de seu mundo; e outro impetuoso, sem controle sobre suas emoções, orgulhoso de uma voracidade que mergulha na ignorância, vaidoso de uma relação edipiana e de falsa soberania. Mimado pela mãe sob o pretexto de ter nascido com pulmão mais frágil, Omar, o Caçula, torna-se sujeito violento, condição conhecida desde os 13 anos, já no primeiro episódio, quando fere o irmão mais velho com um canivete, deixando-lhe uma cicatriz no rosto.
Tudo isso nós já sabíamos desde que Milton Hatoum criou “Dois Irmãos”, em 2000, vencedor do Jabuti (2001) como o melhor livro de Ficção. O que temos agora é essa grande história, bem narrada em prosa e verso, com muita poesia, na tela. Boas histórias, afinal, nem sempre são bem contadas. Aí está um produto que honra com todos os “ais” de Juliana Paes a Zana parida por Hatoum em livro, há 16 anos. Pode-se afirmar, sem pestanejar, que é o melhor papel da atriz na televisão, em um dueto feliz e muito bem trabalhado na sensualidade com Antonio Calloni. As cenas de sexo se esmeram nas sedutoras curvas de Juliana, com alguma brecha para seios, além de peito, perfil e dorso de Calloni, sem resvalar nem de leve em qualquer suspeita de vulgaridade. As sequências que endossam a alta tensão sexual do casal são de uma delicadeza inspiradora e traduzem, no transpirar dos corpos, o grau de libido latente naquela cama que dá origem aos dois irmãos do título e a mais uma filha.
A presença brasileira com ascendência indígena e libanesa naquela geografia, onde a natureza e o comércio se fundem de modo tão visceral, há de aguçar a identidade do telespectador brasilis – mesmo que você jamais tenha pisado em Manaus ou conhecido o contexto daqueles anos que intercalam a 2ª Guerra. Nesse ambiente, a história de dois irmãos tão semelhantes e tão diferentes, porta-vozes de uma rivalidade dolorosa, frutos da predileção materna indisfarçável por um deles – embora não reconhecida pela mãe – poderia ser contada em qualquer lugar do planeta. Daí sua universalidade.
Só para variar, Luiz Fernando Carvalho nos embala com uma trilha sonora à altura dos grandes épicos e nos põe diante de um programa digno de ser chamado de “atração”. É coisa capaz de reverter a subserviência doméstica do televisor. Enquanto a tela se enche com “Dois Irmãos”, vamos correr para fechar janelas e frear os ruídos externos. Vamos ordenar “psiu” para o cachorro e as crianças que ainda estiverem acordadas, vamos pedir silêncio para ver a história de Yaqub e Omar passar, com toda a moldura esculpida pela edição. A julgar pelos três primeiros capítulos, a série vale cada segundo de prostração.
(Aliás, por falar em crianças, tire-as da frente da TV. Há sangue e sexo à vontade, embora não haja um só take gratuito. Tudo tem profunda razão de ser, mas carece de alguma maturidade para ser digerido.)
Assim como se deu em “Velho Chico” e nas demais produções com a assinatura do diretor, não há ninguém que envergonhe o elenco, nenhuma discrepância a olho nu. Não há quem faça feio. Ao contrário. Antonio Fagundes, que vive Halim, mesmo personagem de Antonio Calloni, em sua fase mais velha, surge em um ritmo e acento de narrativa tão distintos de seus registros, que precisamos de tempo até identificá-lo como Fagundes. Muito bom. Matheus Abreu, o ator escolhido para fazer os gêmeos antes que Cauã Reymond assuma os papéis, tem mais semelhança física com o ator, hoje, do que o próprio Cauã tinha quando se ocupava lá de seus 18 anos.
Irandhir Santos, Nael adulto, promove uma narração quase sussurrada de toda a história daquela família, na versão de Halim, de quem ouve tudo. “Pra um velho como eu, é bom recordar o que foi bom, lembrar só do que me faz viver mais um pouco, entende?”, pergunta o patriarca, já na voz de Fagundes.
Cioso de um intenso expediente de preparação de elenco, Luiz Fernando honra a tradição de botar em cena atores que não vomitam frases, que não jogam exclamações e reticências para a torcida à toa. Tudo é conscientemente pronunciado como causa ou consequência do conjunto da obra.
Em duas palavras: não perca.
E, aproveitando, leia o livro de Milton Hatoum.
Estreia na próxima segunda, dia 9, após “A Lei do Amor”, em 10 capítulos de segunda a sexta, por duas semanas.
E já está no ar pela Globoplay, com 3 episódios, para assinantes. Abaixo, uma prévia do que está por vir.