Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Dia da Consciência: TV avançou algumas décadas em menos de dois anos

Raphael Logam concorre ao Emmy Internacional como ator pela série "Impuros", da FOX. Ele também está no elenco central de "Homens", de Fábio Porchat. Crédito: Divulgação

Há menos de dois anos, em abril de 2018, um quadro historicamente comum chamou a atenção de uns e outros, que multiplicaram suas vozes em redes sociais e alcançaram a atenção do até então silencioso Ministério Público do Trabalho: como é que uma novela feita na Bahia tinha tão poucos negros em seu elenco e uma presença majoritariamente branca entre os principais personagens?

“Segundo Sol”, de João Emanuel Carneiro, não se mostrava diferente de um quadro muito tradicional. Desde “Gabriela”, para citar uma trama baiana memorável, novela na Bahia focaliza a elite branca, contrariando as estatísticas reais que fazem da região um estado majoritariamente negro, relegando a esses alguns poucos papéis de serviçais, da cozinha à portaria, entre outros estereótipos.

Na ocasião, a Globo reagiu tentando argumentar que os critérios de escalação para um elenco não passam pela questão da cor, mas da conveniência aos personagens e competência de atores. Alguém mencionou que Taís Araújo e Camila Pitanga estariam sem agenda, e ficou a pergunta: não tem mais ninguém? Afinal, faltavam bons atores negros no mercado? Não. Faltava abrir espaço a eles.

Por que se cobra a Globo? Elementar, é a maior produtora de conteúdo do país, disparado, e se orgulha dessa credencial.

Da mesma forma, quando o “Tá no Ar” fez a memorável esquete “Branco no Brasil: há 500 anos levando vantagem”, a equipe de humoristas responsável pelo programa, com Marcius Melhem e Marcelo Adnet na cabeça, foi questionada por que não havia negros no elenco do programa. De novo, veio a percepção de que isso não se contempla com cotas, mas sim com talentos, e eles não tinham encontrado ainda alguém negro que pudesse ornar o humor ali praticado.

Hoje, como nunca antes na história deste país, há um banco de elenco muito mais diverso, um avanço que não se alcançou – e nem as televisões se esforçaram para tanto – nas outras cinco décadas de TV no Brasil. Temos inclusive um ator indicado ao Emmy Internacional, que, por acaso, é negro – Raphael Logam, protagonista de “Impuros”, série da FOX, está também no quarteto principal de “Homens”, série de Fábio Porchat no canal Comedy Central.

É certo que o barulho em torno de “Segundo Sol” ajudou a chacoalhar a cabeça de quem está à frente das criações e escalações. “Bom Sucesso”, a novela das sete, é toda colorida, inclusive na composição da loira (Grazi Massafera) com o negro (David Júnior) no triângulo principal, de uma forma que era completamente fora da curva da ficção televisiva até então, mas não da vida real.

Negro não vende: pré-conceito

Na ocasião em que o levante de “Segundo Sol” tomou até o elenco branco da trama de indignação, recebi informações em off de profissionais que falavam sobre a má aceitação que a publicidade nutria pelos negros como garotos-propaganda, com uma ideia arcaica de que eles não “vendem”. Como a TV vive de propaganda, ficava a reboque desse pré-conceito (ninguém soube me informar ou não teve coragem de dizer se havia de fato pesquisas e estudos indicando isso).

Daí uma resistência que se tornou um vício em escalações de elenco de produções que visavam a massa, o grande público. Nas discussões sobre consciência negra promovidas nas duas últimas décadas, e felizmente isso não se restringiu a uma data anual, muito tem se falado sobre a crueldade de criar tantas crianças que não se veem representadas na tela. Esse discurso ganhou fôlego pelas mães de crianças negras, como Taís Araújo, Leandra Leal, Astrid Fontenelle, Giovanna Ewbank, Glória Maria e Regina Casé, que no velho “Esquenta” conseguia promover um auditório bastante miscigenado, sem paralelos na TV.

Mas não foi só isso que acelerou um processo de atraso na nossa indústria audiovisual, lembrando que Hollywood já gritava sobre o assunto alguns anos antes, mas também se atrasou para a festa da alforria na tela. A questão da aceitação da publicidade volta a ter seu peso não porque esse segmento tenha se dado conta da necessidade de inclusão, por pura bondade. Ocorre que os negros, hoje maioria nas universidades brasileiras pela primeira vez na história, começam a mostrar sua relevância no mapa do consumo, palavra de rápida absorção para a propaganda e, portanto, para a indústria da imagem de modo geral.

Isso acelera não só a presença de outras cores em cena, mas também a aceitação de discursos contra o racismo, o que até bem pouco tempo atrás era visto como bandeira panfletária em novela, e, mais importante de tudo, a escalação de atores negros em papéis não subservientes.

Em “A Próxima Vítima” (1995), Silvio de Abreu quis inserir em cena uma família negra que tivesse profissionais com ofícios de classe média “normal”, e não ocupados com serviços domésticos ou subempregos.

É salutar que se veja em 2017 uma juíza (Érika Januza) negra em uma novela (“Do Outro Lado doParaíso”, de Walcyr Carrasco). Para tornar a ficção verossímil, no entanto, a personagem se via submetida ao espanto dos demais e a situações racistas, como ocorreria (e ocorre) na vida real. Januza voltará à tela na próxima novela das nove, “Amor de Mãe”, como jogadora de tênis, outra posição rara aos negros, por se tratar de um esporte de elite.

Assim como ela, Fabrício Boliveira, o único negro de protagonismo em “Segundo Sol”, filho bastardo do dono da casa que alcançava alta posição social e financeira na vida, tem se multiplicado em várias produções, do cinema à TV, endossando essa nova geração de gente que, oxalá, em breve não precise mais ser apontada como “atores negros”.

Enquanto as diferenças ainda predominarem, no entanto, e uma novela como “Bom Sucesso” chamar a atenção por se mostrar mais pluralista que a média, será necessário reparar e jogar holofotes sobre as grandes transformações nesse terreno.

A seguir, enumeramos uma lista de nomes e casos que endossam o quanto se avançou nesse terreno desde que um infeliz produtor de elenco mencionou a dificuldade de se escalar “atores negros bonitos” para uma recente série brasileira, num momento de absoluta infelicidade.

  • Bom Sucesso, novela da Globo – Davi Júnior começa a história como grande amor da vida da heroína, Grazi Massafera, mãe de filhos de pais diferentes, uns de pele mais escura que outros, exibindo uma convivência salutar sob o mesmo teto. 
  • Sessão de Terapia (4), série do Globoplay – O mesmo Davi Júnior é um dos quatro pacientes atendidos pelo protagonista, Selton Mello, que em outro dia da semana atende também a menina Livia Silva, afrodescendente, fazendo da negritude 50% da clientela do doutor Caio nesta 4ª temporada.
  • Impuros – série da FOX encabeçada por Raphael Logam, ator indicado ao Emmy Internacional deste ano.
  • Amor de Mãe, novela da Globo – Taís Araújo é uma das protagonistas, no papel de uma advogada bem-sucedida.

    Foto: Ana Branco/Divulgação

  • Aruanas, série do Globoplay – A mesma Taís Araújo vive uma das protagonistas, no papel de uma advogada bem-sucedida.
  • Pico da Neblina, série da HBO – Por trás da questão sobre a hipotética legalização da maconha no Brasil, o enredo traz um ótimo painel para a reflexão sobre a diferença entre brancos e negros, da periferia ao asfalto da Vila Madalena. Encabeçada por Luiz Navarro, a história apresenta ainda toda a família dele, com irmã, sobrinhas e mãe (Teca Pereira). Um jovem, William Costa, o Piolho, merece atenção.

    Luiz Navarro em Pico da Neblina

  • Wiliam Costa, visto em “Pico da Neblina”, está também em “Segunda Chamada”, ótima série da Globo sobre educação, que traz também Teca Pereira. A produtora das duas séries é a mesma, O2 Filmes.

    William Costa, o Piolho

  • Também da O2, a série “Irmandade”, na Netflix, apresenta Seu Jorge como chefe de facção criminosa, mas Naruna Costa como sua irmã, alguém que conseguiu se formar como advogada.
  • 3%, primeira série brasileira da Netflix, revelou Vaneza Oliveira, Joana, mais uma grande opção nessa galeria de bons talentos.

    Vaneza Oliveira, atriz da série “3%”

  • Coisa Mais Linda, série da Netflix produzida pela Pródigo, trouxe Pathy Dejesus e Ícaro Silva na linha de frente da história.
  • O humorista que faltava ao Tá No Ar agora se desdobra em vários programas e foi revelado por Fábio Porchat na Record. Paulo Vieira é um achado. Divertido, carismático e de timing preciso, ele está no Zorra, no Se Joga, e estará na apresentação do novo humorístico da Globo, que sucederá o Tá no Ar.
  • Ao lançar o Se Joga, arriscando várias ideias para ver o que cola (esse programa, aliás, deveria se chamar “Vai que Cola”), a Globo se preocupou em escalar Érico Brás, outro nome do Zorra, para compor o trio de apresentadores, em clara atenção à representatividade de que a televisão carece.
  • O jornalismo da Globo, que vivia de Glória Maria, Zileide Silva e Heraldo Pereira, bancou a presença da primeira negra na apresentação de telejornal diário, com a estreia de Maju Coutinho no Hoje.
  • A minissérie Se Eu Fechar os Olhos Agora, onde o racismo era ampla e dolorosamente abordado, reforçou o lançamento de mais um talento negro, menino, na voz de João Gabriel D’Aleluia, infelizmente mal aproveitado na novela das nove da vez, “A Dona do Pedaço”, como filho de Marcos Palmeira (e até que eles se parecem, sabia?).

 

Curta nossa página no Facebook e siga-nos no Twitter

Cristina Padiglione

Cristina Padiglione