Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Disney reduz ESPN Brasil, mas a ‘padaria’ da esquina resiste a desmanches

Juca Kfouri não terá seu contrato renovado com a ESPN Brasil. Foto: Reprodução

Proprietária da ESPN, a Disney está cada vez mais presente na interferência do canal esportivo que fez história no jornalismo esportivo brasileiro. Nesta quarta (14), foram anunciadas as rescisões de contrato de profissionais de identificação primordial com o DNA do canal.

Além de Juca Kfouri, o mais emblemático dos dispensados e de quem o público há de sentir mais falta, o canal deu adeus aos comentaristas Rafael Oliveira, Arnaldo Ribeiro e Eduardo Tironi. Mas houve mais: chefão do conteúdo produzido aqui, o vice-presidente de jornalismo João Palomino, um dos fundadores do canal, também foi dispensado, assim como Renata Netto, gerente sênior de produção e igualmente com longa trajetória à frente da sigla.

João Palomino, o chefe, um dos fundadores do canal, dispensado nesta quarta

Em comunicado, a ESPN Brasil explicou que “vive um processo de transformação e adaptação para atender aos fãs, acionistas e clientes de esportes em meio às constantes mudanças no consumo de conteúdo”. “A reformulação”, continua a nota, “faz parte do planejamento da emissora para o próximo ano, que seguirá apostando no conteúdo ao vivo e nos direitos esportivos de futebol, tais como Premier League e La Liga, além das ligas norte-americanas como a NFL, NBA, MLB, NHL entre outras.”

Pena que tenham restado poucas bocas para decifrar cada lance em campo, reduzindo drasticamente o diâmetro das mesas redondas que fazem a alegria do torcedor.

Em 30 de novembro de 2017, o grupo dispensou cerca de 150 profissionais ao redor do mundo, pacote que incluiu outro fundador do canal, o jornalista José Trajano.

Da Tupi à Disney, o quarteirão da TV

O que os patetas da Disney talvez não saibam é que a ESPN Brasil está fincada sobre o legado de alguns dos melhores profissionais da TV brasileira, na Rua Piracicaba, 175, endereço que completa a quadra que serviu de sede para a TV Tupi. Ali nasceu, cresceu e faliu o primeiro canal de TV da América do Sul, inaugurado em 18 de setembro de 1950.

Desde que Silvio Santos ficou com o bolo, móveis, imóveis e utensílios do “doutor Assis”, o pedaço lhe pertence, incluindo a torre bem ao lado da atual ESPN, já na avenida Professor Alfonso Bovero, que vem a ser vizinho do edifício que sediou a MTV Brasil aberta, aquela do grupo Abril, outro celeiro de talentos televisivos, já em versão pop.

As dependências hoje ocupadas pela ESPN foram usadas pelo próprio SBT por pelo menos duas décadas, até o fim dos anos 1990. Ali nasceram o Jô Onze e Meia, talk show de Jô Soares depois importado pela Globo, e a vigorosa Comédia MTV, de onde saíram Marcelo Adnet, Tatá Werneck e Dani Calabresa, alguns dos maiores talentos que a Globo tem hoje sob seus domínios.

Oxalá o espírito do “doutor” Assis Chateaubriand ilumine os súditos do Mickey.

Os veteranos da Tupi, aliás, estão ali para dar uma força -os vivos, claro, e não só os fantasmas: boa parte dos veteranos da emissora de Chatô, incluindo Lima Duarte, Francesco Calavano e meia-dúzia de amigos, até hoje marca encontros nostálgicos na Lanchonete e Pizzaria Real, que todos chamam de “padaria”. O pessoal da velha MTV não escapou da sina. Depois que a emissora acabou, em setembro (sempre setembro) de 2013, com sua última transmissão ao vivo celebrada naquelas mesas, é comum encontrar seus profissionais a perambular por aquela esquina, em sinal totalmente mal resolvido de desapego. Quantas externas e videoclipes eles não gravaram bem em frente, naquele discreto parque da Sabesp só notado pela vizinhança? Quantos cocos não esvaziaram na barraca do outro lado da rua?

Quem, em sã consciência, trocaria aquele cenário de pedestres, ciclistas e esqueitistas pelo intenso tráfego de automóveis em meio à selva de arranha-céus da marginal Pinheiros? Se é para esvaziar o conteúdo dos canais, se é para pasteurizar tudo e enterrar iniciativas de criação artesanal, melhor que seja por ali mesmo.

Ao longo dos últimos 30 anos, a Real trocou de mãos, mas o novo dono logo percebeu que nem os garçons ele poderia trocar. O estabelecimento estende suas cadeiras aos ex-funcionários da Tupi, ex-MTV, ex-SBT e ex-ESPN. Quem se queixa? A pizza é ótima, o choppe, idem, e o pudim de leite condensado só não é melhor que aquele servido no restaurante da sede do próprio SBT, na Anhanguera (até hoje não se sabe se algum talento da cozinha foi levado de lá para o outro endereço).

Só a conversa corre o risco de cair na melancolia do saudosismo, mas as boas memórias do tempo que passou compensam o repertório.

Naquela esquina, e pelo menos naquela, a frequência da “padaria” resiste ao desmanche das emissoras da vizinhança, amém.

Leia também: Fundador da ESPN no Brasil, Trajano lamenta demissão de veteranos e critica manda-chuvas 

A calçada da Real no dia da última transmissão ao vivo da MTV Brasil, no Sumaré

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Cristina Padiglione

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