Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Documentário sobre Sandy e Junior traz visão inédita sobre vida real que parece ficção

Júnior e Sandy em show da turnê Nossa História, que celebrou 30 anos da criação da dupla / Reprodução

A série Sandy e Júnior: A História, lançada em julho de 2020 pelo GloboPlay chega neste domingo, 11 de abril, à TV aberta do grupo, com sete episódios semanais, sempre aos domingos, às 14h50. A produção documenta um script real muito bem sucedido, mas que jamais foi visto no conjunto de sua obra, a começar lá pelos 5 e 6 anos de idade dos irmãos, até o fim de uma dupla que ganhou proporções não planejadas por eles ou pela família, e o seu triunfal reencontro para uma turnê nostálgica, 12 anos depois, em 2019.

A narrativa nos permite perceber o receio que eles tinham de revisitar um passado que os enche de orgulho, mas foi cuidadosamente guardado nas gavetas emocionais de cada um, ambos então em busca de outros sons, de alguma individualidade e de uma privacidade que lhes foi tomada pela força das circunstâncias gigantescas que a marca Sandy & Júnior acumulou ao longo de 18 anos de carreira.

Os fãs, um tanto de gente que somou 576 mil ingressos em 18 shows, resultando na 2ª turnê mais lucrativa do mundo em 2019 (só perdeu  para Elton John) certamente já maratonaram os sete episódios. O êxito do documentário, no entanto, está ao alcance da percepção até de quem não aprecia o repertório do histórico da dupla.

Quem só agora põe os olhos nesse enredo é bem capaz de jurar que tudo não passa de uma narrativa chapa branca. Mas a verdade está toda lá. É claro que ninguém gosta de exibir o que deu errado, e certamente alguns passos no meio do caminho foram piores que outros, mas o que importa é que a história dos dois é aquela mesmo: dois irmãos inseridos no universo de um pai famoso pela música se veem desde cedo envolvidos com cantores e profissionais do ramo em festas de família ou no home office do patriarca.

Começam a brincar de imitar os familiares, de cantar domesticamente, e se entusiasmam quando alguém conta que um apresentador de TV (Lima Duarte, então à frente do Som Brasil, na Globo) os convidou para irem até o seu programa para cantar na TV. Dali viria um sucessivo coro da plateia de “queremos mais”, eles acham graça e vão em frente. Segue o filme. Vêm shows, discos, videoclipes, mais aplausos, mais ingressos, mais cenas, mais vendas, mais coreografia, mais convites internacionais, mais prêmios, programa na TV, novela, carreira lá fora e, opa, uma sensação de pressão pela montanha de conquistas, até o esgotamento.

Em 2007, quando resolvem dar um basta, Sandy e Júnior se libertam da megalomania que gera pressão da indústria fonográfica. Em vez daquilo, partem em busca da satisfação que vinham perdendo com a própria música e o direito de escolha, muitas vezes oposta aos interesses de quem também faturava com aquela engrenagem.

Alguém há de perceber que eles ganharam tanto dinheiro até ali que já poderiam, àquela altura da vida, fazer o que realmente gostam, sem se renderem às imposições de uma fábrica mecânica. Mas quantos astros não vimos (e vemos todos os dias) que, mesmo com a conta bancária muito abastada, permanecem reféns do sucesso?

Quase todo artista mirim é uma produção planejada para faturar e brilhar muito, o que não foi o caso deles. Tampouco cresceram desenhados  em molduras pré-fabricadas para se tornarem hits, ao contrário. Todo o caminho percorrido até o auge foi relativamente  artesanal, e só quando a coisa cresceu demais é que se deram conta de que seria melhor contratar um diretor para os seus shows, poupando a mãe, Noely, de se desdobrar em uma supervisão empírica de todo o processo.

Tudo isso está registrado na série do GloboPlay, que enumera perrengues impensáveis para os resultados que conhecemos, como os tensos bastidores do Rock In Rio, em 2001, quando a banda N’Sync, que os antecedia no mesmo palco, criou mil empecilhos para a apresentação da dupla, incluindo restrições à cenografia planejada por sua equipe e até o ensaio a que eles tinham direito.

Acompanhei Sandy e Júnior já em alta, mas antes do ápice, em vários momentos entre 1995 e 1999, e já na época ouvia muita gente me perguntar se aquela harmonia familiar não era obra de marketing. Sinto em decepcionar as línguas ferinas: não era. Como diz Júnior em um dos longos depoimentos distribuídos entre os sete episódios, toda família tem suas brigas e perrengues, e eles não se esquivam de contar quais foram as agonias em que tropeçaram.

Os tormentos vieram sobretudo na forma de fofocas e cobranças sobre os dois. Se já não é simples virar adolescente diante do espelho, único confessionário que a gente se permite ter na fase de crescimento, imagine diante das câmeras e capas de revistas de todo o país? A indústria da intriga de celebridades é muito mais cruel hoje, com a profusão de sites e redes sociais, mas Sandy e Júnior cresceram nos desgovernados anos 90, fase da pós-ditadura, quando nós, jornalistas e comunicadores, e aqui falo na primeira pessoa do plural, ainda experimentando a sensação de liberdade de ideias e questionamentos, não tínhamos noção do estrago emocional causado a uma criança exposta a determinadas perguntas, mesmo aquelas aparentemente mais genuínas, como a cobrança por namorado ou namorada.

Era um comportamento longe de gerar a indignação que muita gente manifestou publicamente diante do constrangimento a que Silvio Santos submeteu Maisa Silva, há uns dois anos, sobre ter ou não namorado e saber, afinal, quando ela vai se casar. E olhe que ela já tinha ali os seus 16 anos. Sandy e Júnior eram questionados sore isso desde os 6 e 7 anos.

Entrevistei Sandy e Júnior ainda pequenos e fui assessora de imprensa dos dois mais tarde, nos intervalos entre uma redação e outra de jornal e revista, quando voltei a entrevistá-los para outras publicações. Quando assumi a revista Chiques e Famosos como editora-chefe, obtive a confiança da família para publicar a primeira foto de Sandy com Lucas Lima, com quem ela viria a se casar, em uma matéria de capa tratada com muito cuidado por todos nós, justamente em razão da alta cobrança sofrida pela cantora desde sempre. Era um fardo ter de responder tão cedo se já havia beijado algum garoto, se já tinha namorado, se ainda era virgem.

Sim, isso aconteceu e não tem tanto tempo assim.

De Júnior, cobravam também romance, sob a pena de suspeitarem de sua masculinidade, o que não era coisa simples para um menino em fase de crescimento naquela época. Os dois falam bastante sobre a pressão sofrida sobre suas vidas pessoais, e uma fileira de programas e capas de revistas atesta o que dizem.

Sandy também fala longamente sobre cada momento, assim como os pais, Noely e Xororó, além de músicos, ex-agentes, diretores e produtores, amigos, dramaturgos, diretores e outros profissionais envolvidos em um currículo que, posso endossar, sempre foi altamente profissional. Talvez por terem crescido sob as rédeas dos pais, ciosos em frear quaisquer ímpetos de deslumbramento com a fama e de advertir sobre as ciladas desse universo que cria alegrias, adrenalina, mas também muitas decepções e frustrações, os protagonistas dessa história sempre tenham sido muito regrados.

Era por isso que muita gente apostava que eles iriam, em algum momento, explodir e descambar para extravasar emoções, mas a contenção era mais obra de pé no chão do que de uma falsa imagem fabricada de bom mocismo.

Vários depoimentos estão endossados por visões diferentes, da mãe, a maior protetora das crias, ao ex-chefão da gravadora. Um sem número de imagens, desde os primeiros passos, recostura toda a história dos irmãos de Campinas (SP).

Foi depois de cantar em um especial de Elis Regina que se tornou comum a pressão sobre a continuidade da dupla. Júnior chegou a ser apontado em matérias e notas como uma “sombra” da irmã”, e confessa no documentário sua mágoa sobre tal percepção. “Eu precisava provar para mim que isso não era verdade”, diz, em raro desabafo de quem vê seu êxito oprimido pelas línguas alheias.

Na partida de cada um para carreira solo, é curioso ouvi-lo dizer também: “precisava me sujar um pouco”. Como alguém que cresceu amparado por todos os cuidados dedicados a crianças expostas aos holofotes, era preciso experimentar saltos sem rede de proteção. Foi ali que se encantou com a chance de cantar e tocar na noite, e de conhecer a atmosfera dos bares, coisa de músico em início de carreira, invertendo a ordem do currículo.

Dos milhões vendidos até 2007, ambos partiram para a casa das centenas, no máximo alguns milhares, fruto de trabalhos artesanais. O nicho se sobressaiu à massa. Fizeram o caminho contrário na indústria do showbiz, consumando um enredo perfeito para a ficção e pouco crível para a vida real. É isso que torna a história dos dois tão instigante: o roteiro de quem foge do lugar comum e arrisca suas emoções fora da tão almejada zona de conforto do ser humano.

A série consegue nos dar esse retrato, o que torna a produção uma narrativa sedutora para além dos fãs. Cada um fala do seu canto, sem interferências alheias, e todas as percepções se encontram num ótimo trabalho de edição e montagem.

Sob direção de Douglas Aguillar, a produção refaz todo o caminho desde o momento em que foram finalmente persuadidos pelo pai, Durval, o Xororó, a revisitar aquele passado. Há detalhados registros sobre a escolha de repertório, arranjos, coreografia, os vários redesenhos de cenário e os pitacos de cada um, dando uma dimensão precisa sobre o gigantesco trabalho exigido para promover toda aquela pirotecnia.

Impressiona ver o cuidado de montarem um palco no meio do nada, em um terreno vazio, para que eles ensaiassem cada passo, cada tonalidade de luz, cada traço do grafismo na projeção de telões.

Lucas Lima assina a trilha da série e participa ativamente da produção do show, além de dar, assim como Monica Benini, mulher de Júnior, seu depoimento sobre cada um, do CNPJ de Sandy & Júnior ao CPF que respeita suas individualidades.

Merece um outdoor a frase que resume toda a ópera, ouvida no relato de Lima Duarte, que os apresentou pela primeira vez diante da massa, na TV, lá em 1989: “A verdade das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que elas foram feitas. Por isso existem momentos inesquecíveis e pessoas incomparáveis”.

(Texto publicado originalmente em julho de 2020 e atualizado em abril de 2021, para a estreia da série na TV)

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Cristina Padiglione

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