Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Estreia de ‘Um Lugar ao Sol’ entrega um filme com bom enredo, sem arestas

Andréia Horta e Cauã Reymond em cena do primeiro capítulo / Reprodução

É sempre arriscado o caminho de um enredo que você não sabe muito bem como explicar quando alguém lhe pergunta: sobre o que é essa história?

“Um Lugar Ao Sol”, novela de Lícia Manzo que estreou nesta segunda-feira (8) na faixa nobre da Globo, primeira produção inédita lançada desde o início da pandemia no horário, é um longa-metragem plenamente bem resolvido, com diálogos, enredo, atuações, direção e edição sem arestas a aparar, de modo que se alguém lhe perguntar o que se passa ali, você há de saber precisamente o que narrar.

Encantam-me as produções contemporâneas realistas com organicidade, aquelas com cenas e diálogos que bem poderiam se passar ao seu lado, no plano de vida real, com a vantagem de serem filmadas por seus melhores ângulos e entremeadas por conflitos e espelhos que se cruzam no caminho entre o palco e a plateia, entre personagens e espectadores.

A saga dos gêmeos vividos por Cauã Reymond, sob direção artística de Maurício Farias, entrega exatamente um filminho que seduz e convence as testemunhas que sintonizam a Globo para conferir essa história.

A novela é feliz em um primeiro capítulo que conseguiu apresentar a gênese dos dois irmãos, um adotado por família abastada e mãe protetora, capaz de estragar o filho, e outro que, esforçado, acredita, a princípio, no poder dos estudos como fator de transformação para a tão desejada ascensão social.

A preguiça passa longe das atuações, dos diálogos, da direção e da edição. Reymond faz o sotaque goiano até narrar que já está há sete anos no “Riiio”, só ali multiplicando as vogais do acento carioca na voz de Christian, antes ocupado pelos erres do doce caipira de Goiás, ao modo Zezé Di Camargo.

Em pouco mais de uma hora de capítulo, a direção é bem-sucedida em alterar esse modo de falar, algo que para muitos atores não é levado em conta na produção de novelas, em razão do ritmo industrial, mas que, caramba, tampouco deveria ser um bicho de sete cabeças para um bom ator.

E Reymond passa com louvor na prova dos nove do acento que vai do goiano ao carioca, assim como na distinção entre o irmão bonito, escondido sob lentes de óculos e abas de livros, e o irmão bonito rebelde, sempre a ostentar um cigarro na boca e um copo ou garrafa de bebida alcoólica na mão.

Quem disser que aquela imagem de Renato (Christofer na certidão original, pré-adoção) é “muito clichê” nunca passou diante dos cursinhos pré-vestibulares de mensalidades bancadas pela elite, onde jovens mal saídos de calças curtas entornam garrafas de vodka desde as 10 da manhã.

Além dos diálogos e ângulos de direção afiados, vale muito a pena se derreter por Andréia Horta, intérprete de personagem solar e mineira como ela. É puro espetáculo ver a atriz como Lara, que até na voz se distingue da mimada Maria Clara, figura que ela trazia até sábado naquele horário, na reprise da novela “Império”, de Aguinaldo Silva.

Convém também abrir espaço para as comoventes cenas entre Tonico Pereira e Reymond, com menções a Machado de Assis, que volta a ser citado quando Christian seduz Lara, poucos minutos depois.

“Livro é livro, gente é gente”, alerta Ravi (Juan Paiva) ao amigo que usa Machado e companhia como escudo.

Atenção ao que vem por aí. Se você curte enredos maniqueístas e fáceis de digerir, rendido que está à preguiça de pensar, melhor é trocar de canal.

Mas arrisco dizer que sempre vale a pena pensar e refletir sobre as questões que a novela traz, de educação e desigualdade social só para começar.

A pandemia nos colocou em lugares nunca antes imaginados, entre a mecanicidade do dia a dia e o isolamento involuntário, de modo que “Um Lugar ao Sol” chega em hora oportuna para nos arrancar as couraças.

 

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