Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Ex-executivo da Globo narra em livro o ofício de exportar emoções made in Brazil

Lucélia Santos, nos áureos dias de sucesso de 'Escrava Isaura', ao lado de José Roberto Filippelli / Acervo pessoal

Vender bons produtos parece tarefa prazerosa até para quem não tem o dom de vender, e olhe que este não é o caso do narrador no livro “A Melhor Televisão do Mundo – Meus Tempos de Globo na Europa”. Em 216 páginas, a publicação já está disponível pela Amazon e em breve chega às livrarias pela editora Terceiro Nome. Publicitário, José Roberto Fippelli representou a Globo por mais de duas décadas na exportação de produções da emissora para países da Europa, Ásia, África e Oceania.

E se for possível vender algo de que a gente se orgulha, como é o caso, morando em Roma e Londres com a família e criando as filhas com liberdade, longe da repressão imposta pela ditadura militar brasileira, a coisa fica ainda melhor.

O posto que acabou por cruzar o caminho de Filippelli sem que ele procurasse exatamente por isso se tornou um emprego muito melhor do que qualquer outro que ele tenha imaginado. Ao entrevistá-lo para este texto, disse-me ele que só não foi o emprego dos seus sonhos porque nem em sonho almejou algo tão instigante como conhecer diferentes culturas por meio de sua própria cultura, conectando-se a hábitos, pessoas e cenas tão distintas de suas origens e com tamanha variedade.

Em 1974, após receber uma boa proposta para vender a agência de publicidade que tinha com sua mulher, Eunice, ele resolveu, com ela e as três filhas, tirar um ano sabático na Europa.

O período se estendeu por 24 anos entre Roma e Londres, 22 deles a serviço da Globo. O expediente lhe deu a oportunidade de assistir in loco ao estrondoso sucesso de “Escrava Isaura”, novela de 1976 que em boa parte abriu caminho para a Globo em vários países, inclusive União Soviética/Rússia e China, onde a emissora nunca havia pisado.

Viu “Malu Mulher” gerar espanto nos gringos que conheciam a situação do Brasil na época e se perguntavam como uma emissora produzia uma série como aquela em plena ditadura? O seriado com Regina Duarte abriu outros caminhos para o Brasil e fez uma carreira que “Plantão de Polícia” e “Carga Pesada” não alcançaram.

Mas foi com “Você Decide” que a Globo marcaria um avanço de território, entrando finalmente no horário nobre das TVs. Por mais que as novelas fossem sucesso, cabia-lhes apenas a faixa da sesta, um segundo horário nobre na Europa. “Você Decide” foi também um precursor na venda de formato, já que a Globo exportava os textos e cada país se encarregava de produzir sua versão, com seus atores, edições e a tão aclamada interatividade, algo hoje muito orgânico, mas que na época se assemelhava a ficção científica.

Foi um acontecimento.

Filippelli tinha a missão de ciceronear nomes como Lucélia Santos e Regina Duarte nas missões da Globo no estrangeiro. Há episódios impensáveis sobre a trajetória das produções da Globo e a receptividade a artistas naquele cenário que normalmente dedica muito afeto ao Brasil, por piores que sejam os mandatários do país.

Não se trata de mero ufanismo. O livro traz relatos de profissionais que ocuparam a mesma posição de Filippelli em outros países, contando como foi a receptividade a produções brasileiras em cada lugar.

Vítima de uma doença degenerativa, Eunice, já não está mais entre nós. Flilippelli se casou de novo, dessa vez com Mary Lou Paris, proprietária da editora Terceiro Nome, que assina o livro em parceria com ele. “Eu tenho esse livro na minha cabeça há muito tempo e sempre me faltou coragem para escrever, colocar tudo no papel. E aí, no começo da pandemia, eu e Lou em casa, voltei a falar nisso e perguntei se ela não escreveria comigo”, conta.

A narrativa leva o leitor pelas mãos a passeios pela antiga União Soviética, à mesa de países como China, Inglaterra e Itália, onde um escritório da Globo ocupava um casarão que somava mais de 2 mil anos, com afrescos no teto. Entre um episódio e outro, conhecemos hábitos de outras nações, da venda de sapatos na URSS ao sistema de saúde dos ingleses.

Filippelli nos conta que o perfil dos executivos de TV mundo afora passou a mudar a partir da privatização dos canais de TV. Lá fora, diferentemente do Brasil e dos Estados Unidos, a maioria das emissoras era estatal. Saíram cabeças conectadas a cultura e conhecimento, entraram profissionais focados em números e planilhas, efeito de um meio antes despreocupado com audiência quantitativa.

Essa descrição de um mundo que já foi menos exatas e mais humanas, mais pautado por emoções do que por índices -que deveriam ser apenas uma consequência, e não o ponto de partida das criações artísticas- inevitavelmente nos carrega para aquele sentimento de “Midnight In Paris”, o filme de Woody Allen que nos alerta para os riscos de ver no passado anterior sempre um mundo melhor que o tempo presente.

Mas, nesse aspecto, sim, o mundo era mais interessante, sim, sem dúvida. Lamento adotar, eu mesma, o tom saudosista, mas compactuo dessa sensação.

“No meu caso, isso também se justifica pela idade, claro, eu preferia ter 40 anos menos”, brinca Filippelli, hoje com 84.

“A Melhor Televisão do Mundo”, título da obra, remete ao cartão de visitas de qualquer executivo de TV de qualquer parte do mundo: todos eles dizem a mesma coisa quando se encontram nas feiras de TV que acontecem ao longo do ano em diversas partes do mundo, sendo as de Cannes (MIPTV e MIPCom) as mais disputadas. Foi lá, uma vez, que o staff da Globo, incluindo Roberto Irineu Marinho, saiu desesperado atrás de Roberto Marinho e dona Lily, que, despreocupados, resolveram deixar a reclusão no hotel onde estavam para dar uma volta pela Croisette, de mãos dadas, sem avisar ninguém.

Membro da Academia Brasileira de Letras, Antonio Torres dá um depoimento no início do livro, citando que Mario Prata, convidado a fazer o prefácio, confessou que o título o assustou. “Vai ver por parecer um desbragado ufanismo caboclo”, descreve. “Mas logo ao entrar nele, você descobrirá que todos os países pensam que fazem a melhor televisão do mundo. ‘Menos, talvez, os britânicos, que, na sua eterna autoironia, devem achar a BBC a pior’ – diverte-se um alto executivo da TV sueca, em entrevista” ao autor do livro.

O publicitário José Roberto Filippelli

“A Melhor Televisão do Mundo” vai muito além da televisão. É uma viagem por lugares, tempos e pessoas que já não frequentam mais o nosso dia-a-dia.

Como diz o jornalista Dácio Nitrini na apresentação, “sugiro ao leitor assistir a este livro!”.

Trechos

ISAURA

“Antes de ir para a Alemanha, Lucélia passou por Londres, onde nos encontraríamos para irmos juntos para Colônia. Discutimos o plano de promoção e depois do almoço ela e Maria Ignes sairiam para passear. Elas passaram antes na minha sala para dar um ciao e assim, só por curiosidade, perguntei aonde iam, imaginando que fariam compras. “A Maria Ignes arrumou um cabeleireiro maravilhoso para mim e eu vou lá cortar o cabelo bem curtinho pro meu papel no Kuarup. As filmagens começam na minha volta ao Brasil.” “Opa, peraí”, eu disse. “Você não pode cortar o cabelo agora!!! Nas entrevistas, você tem que fazer o papel de Isaura, cabelo comprido e tal. É assim que todos te conhecem. Você tem que chegar fantasiada de Isaura, não de Kuarup!!!” Não foi difícil convencê-la. “Prometo que vou te arrumar o melhor cabeleireiro de Colônia, e lá, sim, você vai cortar o cabelo e ainda vamos conseguir uma boa entrevista numa revista de televisão.”
Telefonei imediatamente para o departamento de divulgação da WDR e sugeri que na coletiva ela contasse que ia fazer o filme Kuarup, para o qual teria que cortar o cabelo curtinho e pretendia cortar na Alemanha. Eles avisaram a imprensa e deu no que deu.
‘Sinhá Moça’ foi lançada em Colônia com grande pompa. O primeiro capítulo da novela dublada para o alemão foi exibido num evento com jornalistas e, depois de uma breve apresentação de Müntefering, Lucélia foi entregue aos leões. Aí levei um susto. Eu confiava no taco de Lucélia, mas não esperava tudo aquilo dela.
Com a ajuda de um tradutor e muito segura, falou aos jornalistas sobre o prazer que foi trabalhar numa novela ambientada num momento tão importante da história brasileira, o da libertação dos escravos. Falou sem pressa, com a voz firme e pausada para dar ao intérprete alemão tempo para traduzir.
Em quinze minutos ela domou os leões.”

DE ‘PLANTÃO DE POLÍCIA’ A ‘MALU MULHER’

“Na volta ao estúdio, assistimos ‘Plantão de Polícia’, que eu considerava a melhor das três séries. ‘Plantão’ contava a história de um jornalista policial, meio malandro e bastante sagaz, protagonizado por Hugo Carvana. O personagem era baseado num jornalista famoso no Rio de Janeiro, o Peninha, que ao mesmo tempo resolvia os crimes cariocas e se envolvia com malandros e prostitutas de nível bem baixo.
Lillemor não gostou: ‘Não dá para passar na Suécia. O espectador sueco não entenderia. O ambiente é feio, o personagem está longe de ser um galã, as moças que ele namora são disgusting e há cenas demais de policiais violentos e celas lotadas na prisão”, disse-me. “Eu soube que no Brasil tem isso, mas aqui não.” Veja só, ainda passei vergonha. Ela me contou como eram as delegacias e prisões na Escandinávia e minha vergonha aumentou mais ainda.
Ela se animou ao ver o folheto de ‘Carga Pesada’, imaginando que, além da aventura de dois caminhoneiros –Antônio Fagundes e Stênio Garcia–, veria um tanto da paisagem rural brasileira, tão
mitificada na Europa. Mas, não: os dois motoristas procuravam espelhar as dificuldades de ser caminhoneiro, com as estradas ruins, o longo percurso de Porto Alegre a Belém e as injustiças sociais
que muitas vezes tratavam de reparar. Não consegui vender.
Em compensação, quando Lillemor viu Malu, se emocionou. Na metade do screening, fez uma pausa e foi buscar alguns colegas para também assistirem. A maior parte dos funcionários da emissora era mulher. Começamos de novo.”

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Cristina Padiglione

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