Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘Falas da Terra’ tem fôlego para furar bolhas e extravasar militância indígena

Em 19 de abril, Globo exibiu o especial Falas da Terra, onde Valdelice Verón Guarani Kaiowá deu comovido depoimento sobre o pai, líder do povo guarani kaiowá, Cacique Marcos Verón, que foi assassinado / Divulgação

Da criação à montagem, passando essencialmente pela escolha do elenco, “Falas da Terra” é feito por militantes, mas não apenas para a militância indígena, o que lhe confere mais utilidade social. Tive a chance de assistir ao documentário, que vai ao ar neste 19 de abril, após o “BBB”, na Globo.

Merecia um horário melhor, vá lá, mas como vitrine é muito bem-vinda: a TV comercial nunca fez tributo aos indígenas disposto a provocar reflexão, como este. No máximo, patinava em homenagens de um falso tom folclórico da efeméride, sob o som da famosa canção interpretada por Baby Consuelo (hoje, do Brasil). Embora eu goste muito daquele balanço de Jorge Ben (hoje Benjor), felizmente o hit não faz parte da edição porque a trilha aqui é mais raiz.

Um parêntese: o rapper Kunumi MC, do povo Guarani Mbyá, bem que traz outro som, mas a letra prega que “Todo dia é Dia de Índio”, no presente.

Mas por que acredito que o programa tenha condições de furar bolhas e alcançar tanta gente que ainda lança um olhar enviesado aos indígenas? Porque o documentário consegue responder aos preconceitos mais frequentes contra eles, ou assim quero crer.

Há quem estranhe o fato de os indígenas terem telefone celular e acesso à internet, sem no entanto quererem abrir mão da demarcação de suas terras e de suas raízes. O que tem uma coisa a ver com a outra? “Ah, quer ser moderno, mas não abre mão da terra”, dizem muitos.

E então você dá de cara com aquelas personagens de “Falas da Terra” e pensa: como alguém pode duvidar que as terras sejam direito deles, que estavam aqui tão antes de os brancos chegarem? Se a reivindicação deles é cuidar de rios e florestas, e isso tem sido provado ao longo desses 521 anos, que direito têm madeireiros, especuladores imobiliários ou de minério que desembarcam em reservas naturais para sair desmatando, furando pedras, contaminando rios e matando quem se opõe a eles?

E desde quando a preocupação em preservar suas origens é incompatível com a tecnologia? Nós temos até família monarca num país sem monarquia, tão ciosa de suas origens, todos muito bem conectados aos seus iphones e wi-fi. Por que suspeitar que outros não querem o mesmo, estando nesta terra bem antes de príncipes regentes e que tais, sem necessariamente estarem desconectados do mundo contemporâneo?

Veja, os depoimentos não embarcam nessas questões, devaneios meus, mas conheço muita gente que confronta a cultura indígena como se modernidade e preservação cultural fossem paradoxais, e a sequência de relatos de “Falas da Terra” nos entrega uma visão que derruba facilmente as bobagens proferidas por aí.

A edição fala também dos povos isolados e percorre todas as regiões do país por meio de algum representante de cada lugar, o que também põe abaixo o mito (sim, ainda há quem pense isso) de que só há índios na região amazônica.

Artistas, advogada, médica cardiologista, rapper, influenciador digital (pela produção de conteúdo indígena), bióloga, professor, cientista, antropóloga, estudante e estilita alternam-se com líderes como o consagrado Raoni, o único a falar em sua língua (com legendas em português), Daniel Munduruku, autor de dezenas de livros infantis sobre cultura indígena (e vencedor de dois Prêmios Jabuti), e Ailton Krenak, conhecido desde que pisou no Congresso, em 1987, na época da elaboração da nossa última Constituição, para reivindicar atenção aos seus povos, demarcação de terras e consequente preservação de territórios.

Krenak também atuou como consultor e participou da criação do programa. Afinal, se a história dos indígenas no Brasil sempre foi contada por seus algozes, os colonizadores e seus herdeiros, é como diz a atriz Lian Gaia na abertura do programa: “Nesses 521 anos, contaram a nossa história, na arte, nos filmes, nos livros de escola, na política, mas não hoje, não mais. Chegou a vez de ouvir a nossa voz”.

Ela é uma das 23 vozes que compõem o documentário, que busca um tom didático capaz de convidar um público que pouco entende do assunto, sem subestimar quem tudo sabe sobre indígenas.

Um ponto que também pode acordar os brasileiros incapazes de abraçarem as causas indígenas vem da advogada Fernanda Kaingáng, que se viu obrigada a estudar as leis para defender seus semelhantes, e representa o Brasil em fóruns internacionais sobre o tema. Diz ela, com efeito, que a matança de indígenas não é um fato de 1500, é algo que acontece hoje, no Brasil. Sim, todos sabemos, mas fingimos não saber, e sempre que alguém nos lembra disso não há como evitar o espanto –desde que o ouvinte disponha do mínimo de empatia, evidentemente.

A invisibilidade citada por outro depoimento justifica boa parte das atrocidades, como o recente massacre dos Guarani-Kaiowás abordado também na edição por Valdelice Verón Guarani Kaiowá, filha do Cacique Marcos Verón, torturado e assassinado em 2003, em episódio que teve início com aval judicial.

A edição também se antecipa a possíveis críticas a Mapulu Kamaiurá, a primeira pajé do Xingu, e a Raoni, ambos ciosos de suas raízes, que não vestem trajes indígenas em seus depoimentos e ganham explicação extra na legenda: o figurino excepcional representa luto pela perda recente de parentes.

Além de Krenak, outros indígenas estiveram por trás das câmeras, sob a direção de Antônia Prado: Ziel Karapató, artista e ativista; Graciela Guarani, cineasta; Olinda Tupinambá, jornalista e documentarista; e Alberto Alvarez, cineasta e realizador.

Em tempo: “Falas da Terra” vem se juntar a “Falas Negras” e a “Falas Femininas”, três documentários produzidos anteriormente, em celebração ao Dia da Consciência Negra (20/11) e ao Dia Internacional da Mulher (08/03), respectivamente. Em comum, todos refletem a preocupação da Globo em ampliar um leque chamado “diversidade” em sua tela.

COTAÇÃO: MUITO BOM

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