Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Alô, general Mourão, ainda dá tempo de assistir a ‘Falas Negras’, especial da Globo

Mariana Nunes revive Lélia Gonzales com um depoimento que explica a percepção de Hamilton Mourão sobre a 'inexistência' do racismo no Brasil / Reprodução

Questionado sobre a morte do João Alberto Silveira Freitas, negro, espancado até a morte em uma unidade do Carrefour em Porto Alegre (RS), o vice-presidente Hamilton Mourão rejeitou a tese de que o espancamento foi um ato de racismo, ou mesmo que a cor da vítima tenha sido decisiva para o nível de violência lá praticado. Para Mourão, não há racismo no Brasil, apenas uma desigualdade, que atinge, em grande parte, os negros.

Por que será?

Parece óbvio relacionar uma questão à outra, mas não para Mourão. E ele não está sozinho. Se o nosso vice se dispusesse a assistir “Falas Negras“, especial que a Globo produziu e exibiu na noite desta sexta (20), já disponível via streaming no GloboPlay, seria muito fácil entender o que uma coisa tem a ver com outra. Basta ligar a TV, nem é preciso se dar ao trabalho de ler. Ouso dizer que não notar a relação direta entre desigualdade e racismo seria uma falta de capacidade cognitiva.

Idealizado por Manuela Dias e dirigido por Lázaro Ramos, o especial trouxe depoimentos de personagens negros emblemáticos, dos anos 1600 até hoje, tratando de escravidão, abolição e todo o preconceito que atravessa séculos a partir do tráfico humano praticado nos países africanos.

Lá estão Martin Luther King, Malcom X, Nina Simone, Nelson Mandela, mas tem também gente nossa e gente de um tempo muito nosso, como o pai do menino João Pedro, 14, baleado dentro de casa em São Gonçalo, no Rio, além de Mirtes, a mãe do menino Miguel, 5, que caiu de um edifício no Recife ao ficar sob os cuidados da patroa enquanto a empregada doméstica, mãe do menino, levava os cachorros da casa grande para passear, e a ex-vereadora Marielle Franco, executada dentro de um carro em 2018.

A luz e o enquadramento reforçam a densidade de cada depoimento, de modo a concentrar a atenção do espectador, que é contagiado pela autenticidade daquelas interpretações, todas, afinal, em seu lugar de fala quando se pensa na ancestralidade que cabe àqueles atores na vida real.

Há vários ensinamentos a Mourão e a quem pensa como ele, que só viu nos Estados Unidos, nos anos 1960, o racismo que não vê aqui. Mourão lembra que os negros, lá, andavam separados de brancos e ficavam no fundo do ônibus, o que ele nunca tinha visto.

Não lhe alcança a percepção de que 60 anos se passaram e os EUA mudaram profundamente. Os negros americanos certamente conquistaram uma mobilidade social maior que aqui, justamente porque o racismo velado de cá só atrasou as reformas necessárias para promover qualquer tentativa de igualdade de direitos. Por séculos, os brasileiros brancos jogaram essa cascata de que a empregada “é como se fosse da família”. Mas dar a ela um naco da herança, necas de pitibiriba.

O depoimento de Lélia Gonzales (vivida por Mariana Nunes), intelectual, ativista e professora universitária, de 1980, é, infelizmente, tão atual, que por explica a posição de Mourão e companhia ainda hoje.

“Eles pensam que o povo pode ser enganado dessa maneira, pensam que convencem o povo de que nós somos uma democracia racial, eles pensam que estão realmente mostrando o Brasil como um paraíso racial, que o negro é muito bem considerado e muito respeitado em nosso país. Mas a gente sabe o preço que o preto tem que pagar pra dar essa falsa impressão, pra fazer parte desse teatro: ele tem que trair suas origens, trair o seu povo e se transformar num preto de alma branca. Num preto sim, senhor. Na verdade, ele tem que virar branco. O que eles não sacam é que a gente sabe muito bem quais são os seus interesses.

A gente sabe muito bem que o povo negro brasileiro tem sido massacrado, perseguido, espoliado. Por exemplo, a situação da mulher negra. A situação da mulher negra hoje não é diferente do passado, da época da escravidão.A mulher negra ela é objeto de dois tipos de desigualdades, que fazem dela o setor mais inferiorizado da nossa sociedade brasileira. Como trabalhadora, por exemplo, a mulher negra continua a desempenhar as funções modernizadas da escrava do leito, da mucama e da escrava de ganho. Como mãe e como companheira, a gente sabe que a mulher negra continua aí, sozinha, batalhando o sustento dos seus filhos, enquanto o seu companheiro é objeto da violência policial, ou está morto, ou está na prisão, ou está desempregado e é vítima do alcoolismo.”

 

O elenco reúne ainda Babu Santana, Barbara Reis, Taís Araujo, Izak Dahora, Guilherme Silva, Tatiana Tibúrcio, Bukassa Kabengele, Aline Deluna, Reinaldo Junior, Olívia Araújo, Ailton Graça, Silvio Guindane, Fabrício Boliveira, Naruna Costa, Tulanih Pereira, Flávio Bauraqui, Valdineia Soriano, Angelo Flavio, Ivy Souza, Heloísa Jorge e Samuel Melo e Valdineia Soriano.

Vale a pena ser visto. Mais: vale ser apreciado como um avanço dos esforços do audiovisual para dar mais representatividade aos negros, tão mal refletidos na tela, esforço este que veio respaldado pela demonstração de que a publicidade também pretende acompanhar esse movimento, amém. A Boticário não só patrocinou “Falas Negras”, como trouxe filme que convida as crianças negras a se verem na tela.

Não faz tanto tempo assim, um famoso publicitário disse que “o público” não gostava de ver negro em propaganda. E não falou isso às escondidas ou ao pé do ouvido de alguém. Disse bem diante das câmeras, microfonado, com plena convicção de que proferia uma grande verdade. Estamos longe da tela ideal, ainda tão desigual quanto na vida real, mas podemos dizer que avançamos alguns passos.

 

 

Curta nossa página no Facebook e siga-nos no Twitter

Cristina Padiglione

Cristina Padiglione