Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Fernanda Young não teve tempo de rir da própria frase

Fernanda flagrada por uma amiga em publicação no seu Instagram

Da primeira formação do Saia Justa original, com Monica Waldvogel, Marisa Orth e Rita Lee, a escritora e atriz Fernanda Young sacudiu aquela roda do GNT quando disse que “velhinho” não era necessariamente alguém fofo, podendo ser “só um filho da puta que não morreu antes” e envelheceu. Causou barulho, e nem havia ainda rede social naquele tempo, início dos anos 2000.

Fernanda, honrando o significado do sobrenome, não era dessa categoria (de filhos da puta, digo) e poderia muito bem ter vivido bem mais, primeiro porque quem convivia com ela assim torcia, segundo porque uma grande plateia apreciava suas obras e queria mais, e, por último, só de sacanagem, para morder a própria língua e saber que nem todo mundo que vive por mais tempo faz parte desse grupo.

Morreu neste domingo, aos 49 anos, quando teve uma parada cardíaca durante uma crise de asma.

Era uma debochada em tempo integral, divertida, mas também incomodava muita gente. Tivemos algumas amigas em comum, vizinhas que éramos de bairro, com filhas (as dela e a minha) estudando na mesma escola, e os relatos sobre ela eram sempre fascinados, sobre alguém inventivo, ousado, sem contas a prestar a ninguém.

Entrevistei-a só uma vez, quando ela fez a linha indignada, sem espaço para gracinhas.

Mais fácil conhecê-la por sua obra, toda feita em parceria com o marido, Alexandre Machado, e até mesmo do “Dentista Mascarado”, série de estreia do Marcelo Adnet na Globo, faço alguma defesa. Era uma ridicularização com terrir (terror+rir) que não cabia no gosto médio da TV aberta, mas possivelmente teria sido sucesso no YouTube, concentrando só o público geek.

A referência maior é “Os Normais”, com Fernanda Torres e Luiz Fernando Guimarães, feito para durar três meses, que rendeu dois anos e dois filmes. Alvo de diálogos afiados, a série enfocava um casal que se achava muito moderno e diferente, mas recaía sobre questões muito comuns de ciúmes e D.R. (discussões sobre a relação).

“Os Aspones”, “Minha Nada Mole Vida”, “O Sistema” e “Vade Retro”, recente série com Tony Ramos e Mônica Iozzi, também têm sua assinatura e a do marido. A obra mais recente já lançada, “Shippados”, com Tatá Werneck e Eduardo Sterblicht, está disponível no Globoplay e é ótima. De novo, ela traz à tona os dramas de uma geração completamente distinta, quase marciana em relação à sua, com um humor que se permite fazer algum drama antes da gargalhada.

Fernanda se despediu, sem saber que era despedida, claro, com um texto que sintetiza sua essência, publicado no seu perfil no Instagram na véspera de sua partida. Quase ao fim, disse que estava longe de encerrar sua jornada, o que não se anula com sua morte, já que a obra fica e e fica em cena com plenas condições de provocar reflexão e cutucar a plateia. É o que vale.

Eis a íntegra do último texto publicado:

“As pessoas me acham maluca, mas estou observando tudo – de dentro e de fora. Pensam que não percebo as suas falcatruas, mas ser gentil não significa ser otária! Trabalho feito uma vaca, pago essas merdas desses impostos, não vejo uso para eles, escuto que mamo em tetas do governo; divirto as pessoas, ofereço poesia, e lido com ignorâncias proferidas por um bando de escroto que mete Deus nos seus discursos hipócritas. Deito e levanto cansada porque nunca peguei um centavo de ninguém e tudo o que tenho é fruto de TRABALHO. Não herdei, não ganhei, nem sou sustentada! Tenho 4 filhos que estão aprendendo a serem éticos e livres. E o que ouço? É louca! O que vejo? A nossa cultura material e imaterial, a nossa língua, a nossa fauna, flora, sendo esganiçada, sacaneada, por ogros maléficos. Estamos virando uma gente porcaria, afinal “piorar é mais fácil”! E fica tão claro o oportunismo das ratazanas sorrateiras, que veem na “loucura do criador”, achando-nos dispersos, irresponsáveis, ricos, nesgas para sermos passados para trás! Comigo, não! Não! Sei reconhecer um lápis meu em meio a um milhão! Não estive “calada nos últimos 14 anos”, não aceito desaforo! Sou uma mulher de 50 anos que sonhou alto e realizou muito. E estou longe de encerrar a minha jornada nessa orbe! Aos que se interessam: bom proveito. Para os outros: estou pouco me lixando!
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(Texto escrito no ônibus. Ganho para escrever. Aqui ofereço de graça e com erros. “Flagra” (referência à foto do post dela, que copio nesta publicação) de @e.mym que postou a foto com uma legenda muito mais sábia.)”

 

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Cristina Padiglione

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