Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Ficção com Regina Duarte não deu spoiler da vida real

Regina em entrevista à CNN, arranca o fone de escuta e se recusa a ouvir Maitê Proença / Reprodução

A entrevista de Regina Duarte à CNN Brasil, cantarolando música em tributo à ditadura militar, menosprezando a vida perdida por milhares e negando-se a ouvir uma pergunta de uma colega sua sobre a pasta pela qual responde no governo atual é um choque mesmo para quem já sabia que ela tinha medo de Lula (antes de ele sentar na cadeira) e simpatia por Jair Bolsonaro (antes e depois de ocupar a mesma cadeira, o que é mais revelador sobre os valores que defende).

Desde quinta-feira (8), quando ocorreu o episódio, além de toda a repulsa expressada pela classe artística, muita gente se pergunta como pode se encantar com Porcina, Raquel Acioli, Chiquinha Gonzaga, Helenas e Malu, personagem que auxiliou toda uma geração na disseminação de valores femininos na equiparação com o poderio masculino, mas sobre o qual, como já dissemos aqui por ocasião de uma entrevista a Pedro Bial, Regina não entendeu nada.

Nessas horas, devemos agradecer pela ficção não ter nos dado spoiler em nenhum momento. Ainda bem que vi Porcina, Chiquinha, Malu, Helenas e até Maria do Carmo, personagem que agora talvez lhe faça jus no título de Rainha da Sucata, sem saber que ela protagonizaria a cena transmitida ao vivo na quinta e replicada à exaustão em redes sociais. Ainda bem que pude me emocionar com ela em tantas ocasiões, sem conhecer de verdade a bandeira que a motivaria hoje.

Como bem disse Aimar Labaki em sua página no Facebook, não é o caso de negar o seu carisma, “esta qualidade inata que faz com que as pessoas simpatizem com ela”. Não são raras as cenas em que esta mulher falava só com os olhos. Há imagens em fotos que endossam o gigantismo de sua expressividade no olhar, algo que não se aprende, não se treina, não se adquire: ou se tem ou não se tem. Regina tem até mais carisma do que tecnicidade para representar. É como nascer com a voz do Cid Moreira: tem gente que nasce com um presente pronto para construir sua vida.

Em ‘Malu Mulher’: olhar / Divulgação

No último capítulo de “Por Amor”, de Manoel Carlos, em 1997, sua Helena responde só com o carão, sem uma palavra, ao enorme texto de Antonio Fagundes, então na voz de Atílio, que desabafa contra as mentiras de Helena, sua personagem. “Você não sabe amar, mas pode aprender”, disse el.

Regina faz agora mau uso do brinde inato, uma pena. Ou, vendo pelo lado positivo, teve a chance de parecer mulheres  incríveis graças ao texto alheio, construído por profissionais do ramo, que salvaram suas falas e nos deram um retrato mais bacana seu por mais de 50 anos.

Gostaria mesmo de apagar a cena de quinta-feira e voltar à ficção, sem jamais saber o que ela pensa, mas fechar os ouvidos neste momento é algo que só os militantes e torcedores o fazem, ignorando a informação necessária que tão mal tem causado a todos nós, da pandemia aos equívocos cometidos em um contexto de crise geral no Brasil, com risco de vida para milhões.

Negar-se a ouvir a pergunta de Maitê Proença nem foi o ponto mais frágil da imaturidade ali demonstrada por alguém que se dispõe a ocupar um cargo público e se recusa a conversar com os interessados abrigados sob o chapéu da Cultura, ou do que restou dela. Mas é preciso notar que a CNN Brasil não abriu espaço para qualquer ferrenho opositor de Regina. Maitê está longe de se comportar com o ativismo de um José de Abreu, nunca balançou bandeira pelo PT e tanto tentou respeitar a opinião diferente de Regina, que teve seu respeito confundido com apoio.

“Eu fui a primeira a defender o direito dela de pensar diferente de mim, e isso fez parecer que o meu voto foi o mesmo que o dela, o que não foi”, explicou Maitê em seu Instagram no dia seguinte.

Aplaudida pela ala militar do governo e pelo guru de Bolsonaro, Olavo de Carvalho, Regina ganhou um dia de sobrevida no cargo, já que Carvalho voltou a suspeitar de suas boas intenções ainda na sexta-feira (9).

Poderíamos concluir que o posto a envaidece, mas se o cargo não paga as suas contas melhor do que a Globo pagou desde 1965 nem lhe dá uma vitrine maior que a Globo, e tampouco um texto superior ao que os autores de ficção lhe escrevem, só se pode concluir que Regina se identifica muito com as bandeiras do atual governo, incluindo aquelas que a julgam por suas escolhas e falas de autoria própria.

O governo militar exaltado por Regina enquanto menosprezava as mortes por tortura na ditadura cantando “eu te amo, meu Brasil” na CNN  lhe prestou um grande favor ao vetar a versão de “Roque Santeiro” de 1975, quando Porcina era Betty Faria. Em 85, quando a novela finalmente saiu, houve um desencontro entre agendas e o papel acabou caindo no seu colo, um marco na sua carreira, que até a levou a posar para foto com Fidel Castro em Havana em razão do sucesso da novela do comunista Dias Gomes, escrita por Aguinaldo Silva.

Mas é bom lembrar que ela chegou a ir a Brasília em 75, mesmo não fazendo parte do elenco, para engrossar uma comitiva que levou uma carta ao então presidente Ernesto Geisel em protesto à censura sofrida pela novela, como relata a jornalista Laura Mattos em “Herói Mutilado – Roque Santeiro e os bastidores da censura à TV na ditadura” (Cia. das letras).

Entre os vários protestos que vi em redes sociais de seus colegas, ou ex-colegas, já que os interesses parecem tão distantes, destaco a frase de Vera Holtz, como fiz no Twitter: “Eu sempre gostei mais de Odete Roitman”. Um vídeo em que Beatriz Segall, intérprete da icônica vilã, fala a Bruna Lombardi em um programa de entrevistas sobre a “ignorância” de quem exalta a ditadura foi resgatado e circula pela internet.

Não é à toa que ouvi de um autor de TV, ainda na quinta-feira: “quero de volta todas as falas que escrevi pra ela”.

Como me disse uma vez Manoel Carlos, que fez de Regina sua Helena, batismo de suas heroínas, em três novelas (“História de Amor, em 1995), “Por Amor”, em 1997, e “Páginas da Vida”, em 2006), “as pessoas cobram lógica da ficção, quando a vida real muitas vezes não tem lógica alguma”.

 

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