Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Ficcional, vilão pode ser o personagem mais real da novela sobre D. Pedro 2º

Alexandre Nero como Tonico, antagonista de D. Pedro 2º / Divulgação

A novela “Nos Tempos do Imperador”, que retrata um trecho da vida de D. Pedro 2º, interpretado por Selton Mello, há de romancear boa parte da vida do monarca, como convém a qualquer adaptação histórica disposta a fisgar a emoção do público. Mas lá estarão figuras que existiram de verdade, como a imperatriz Tereza Cristina (Letícia Sabatella), a condessa do Barral (Mariana Ximenes) e Solano López (Roberto Birindelli), ex-presidente do Paraguai.

Um personagem ficcional, no entanto, promete nos apresentar mais realidade (e atualidade) que qualquer outro. Ele é Tonico (Alexandre Nero), um protótipo do que anos mais tarde viríamos a chamar de coronel e do que hoje se associa a muitos deputados. Não por acaso, o sonho de Tonico, um invejoso que cobiça o trono de D. Pedro 2º, é se tornar deputado.

“O Tonico é um personagem ficcional, mas às vezes me vem uma coisa na cabeça: talvez seja o personagem mais real da novela”, disse Nero em entrevista remota promovida pela Globo.

De Alessandro Marson e Thereza Falcão, sob direção artística de Vinícius Coimbra, o mesmo trio de “Novo Mundo”, “Nos Tempos do Imperador” estreia no dia 9 de agosto, um ano e meio após a primeira previsão, atropelada pela pandemia.

“É um lugar absurdo, ele é a personificação do mal. É uma coisa de época com que as pessoas vão se identificar muito. Esse cara está eventualmente em mim também, não são só os outros. Você, eventualmente está ali. Esses absurdos que as pessoas eventualmente veem, falam… A gente é fruto dessa educação, desse chip, desse país racista, desse país escravocrata. Esse homem está aí, andado no nosso meio”, continua Nero.

Protagonista de “Império”, atualmente em reprise na faixa nobre da Globo, o ator contou que tem assistido à novela de Aguinaldo Silva, o que não foi possível acompanhar tão fielmente na época da exibição original (2014) porque ele estava quase sempre a serviço das gravações.

E se há quem veja vários defeitos no comendador José Alfredo, Nero ressalta que aquele é um sujeito com defeitos e qualidades, o que não é o caso do maléfico Tonico. “Ele se diferencia muito desses personagens todos, não tem dualidade. Eu gosto sempre de colocar nos personagens que eu fiz uma humanidade, para que as pessoas percebam outros lados: ninguém é só bonzinho nem só malvado, mas ele [Tonico] é a personificação do mal, mas é importante para a novela que ele seja isso.”

“Tem muita gente que não gosta do comendador, mas ele é um anti-herói, acho isso muito bacana, muito bom ter muitas camadas. O Tonico tem diversas camadas também, mas tudo pro lado do abusrdo. O Tonico, acho tão absurdo o que ele fala, até a hora em que a gente começa a ver isso na vida real. Esse cara está aí, não tem nada de ficção, é assustadoramente real.”

Tonico personifica o fazendeiro escravocrata, racista, cioso de perder seus privilégios e, portanto, altamente segregador. Com índole contestável desde muito novo, agrediu Dom Pedro 2º quando os dois ainda eram crianças, e motivou a expulsão de sua família da Corte. Com raiva da atitude do filho, por perder regalias no governo, seu pai, o coronel Ambrósio (Roberto Bomfim), o mandou para Pernambuco, onde passou anos estudando e se formou em Direito.

Sem a presença materna e distante do pai, Tonico se abasteceu de inveja e ressentimento ao longo dos anos. Um de seus sonhos é se tornar deputado e até tomar o lugar de Pedro 2º, tornando-se o imperador do Brasil, o que seria impossível.

DE GERALDO BULHOSA A TONICO

É interessante notar que Tonico explica muito do que temos hoje no país, mas outro personagem ficcional de Nero, igualmente possível para a nossa realidade, também nos ensinou o quanto os nossos vícios foram forjados há séculos. Era Geraldo Bulhosa, criação de Bruno Mazzeo na ótima série “Os Filhos da Pátria”, disponível no GloboPlay.

Bulhosa não tinha a violência nem a maldade de Tonico, mas era o banana que não se opunha à corrupção e que, sem disposição de lutar contra ela, deixava-se ninar pelos piores parceiros. Foi retratado em duas épocas distintas, uma em cada temporada: na pós-independência do Brasil, como contemporâneo de Pedro 1º, e nos anos 1930, contemporâneo de Getúlio Vargas.

De formas distintas, os dois personagens de Nero nos alertam sobre um passado que se faz tão presente no Brasil. E quem aprecia a iniciativa de “Nos Tempos do Imperador” e de “Filhos da Pátria”, uma na pegada do melodrama, e a outra, do riso, há de se render ao D. Pedro 2º de Selton Mello.

Nero como Geraldo Bulhosa, na 1ªtemporada de ‘Filhos da Pátria’ / Divulgação

LINCEÇA POÉTICA

Os autores da nova novela não negam que façam uso de lincença poética para seduzir a plateia, mas garantem que o monarca não será visto por uma leitura dita “chapa branca”. A novela enfoca, por exemplo, o contexto da Guerra do Paraguai, o que definitivamente não é o melhor momento de Pedro 2º.

As invenções, evidentemente, são muitas. “A primeira semana de Novo Mundo era uma grande viagem”, lembra Marson. “O navio da Leopoldina jamais foi invadido por piratas, mas era um meio de as personagens se revelarem. A novela tem que emocionar. Se ela puder emocionar e ensinar algo, melhor.”

Thereza fala que “Nos Tempos do Imperador” aproveita a insersão da Bahia na história para “puxar um pouco para Jorge Amado”. “Faz tempo que a gente não fala de Jorge Amado. Tanto é que a gente forçou uma barra e trouxe os coronéis, mas ali não era o tempo dos coronéis”, cita a autora.

Se você, espectador, desconfia de que nem tudo o que está ali seja verdade, tanto melhor para se debruçar sobre pesquisas que possam lhe trazer mais conhecimento sobre o assunto, no caso, sobre o seu país, seus pecados e suas glórias.

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Cristina Padiglione

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