Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Fora de Hora começa a honrar o papel de humorístico

Adnet, o presidente "heterossexual Jair Bolsonaro", em sua live/Reprodução

A terceira edição do Fora de Hora, novo humorístico da Globo, foi melhor que a segunda, que foi melhor que a primeira.

Salve a evolução da espécie e o azeitamento da fórmula.

Por um lado, o noticiário da vida real tem fornecido muitos elementos surreais, colaborando com a chacota. Por outro, como informa sabiamente o slogan do Zorra, humorístico das noites de sábado da casa, “tá difícil competir com a realidade”.

De todo modo, sempre é mais fácil rir do ridículo do que da serenidade. Sempre será mais saboroso escancarar as cores do nonsense, mesmo aos daltônicos, que custam a admitir o nível patético de temperatura das decisões que atualmente nos cercam, gente para quem toda crítica ou cobrança é apontada como torcida contra o país.

O humor tem mais chance de êxito que o noticiário na arte de fazer a plateia refletir. Ao promover um espelho caricato do presidente Jair Bolsonaro, Marcelo Adnet entretém o espectador e desmonta, assim, parte da resistência racional de quem insiste em defender um discurso marejado de preconceitos em nome do dito “cidadão de bem”.

Na segunda edição, Adnet fez o mesmo com o ministro Sergio Moro, expondo contradições dos pareceres do ex-magistrado.

Faltava ao Fora de Hora alinhavar os absurdos do dia a dia com essa lente de aumento que a piada pede, mas trazendo à tona a ridicularização com inventividade. Tosco por tosco, como parecia a edição inaugural, todo mundo pode ser.

A paródia sobre a campanha da abstinência sexual de Damares Alves foi ao ponto, coroando uma narrativa que fez jus a esta impensável bandeira em pleno terceiro milênio. O apresentador, Paulo Vieira, tentava ler a notícia sem gargalhar. “Calma, gente, eu vou conseguir”, disse.

Em ritmo de videoclipe, Késia Estácio mandou muito bem na letra de “Ô, ministra”, uma boa resposta à campanha oficial. Diz a letra:

“Pode ser tesão ou pode ser amor / Se a juventude for querer transar sem informação nem proteção, ferrou / Vai pegar doença ou engravidar. Não precisa de abstinência, ô ministra / A informação não erotiza, cria uma campanha realista, não custa tanto / Eu acho que a ministra tá perdida no rolê / Iêiêiê iêiêiê /Saber quais são os riscos vale mais do que se abster / Então, fique ligada e vê se ajuda ajuda a molecada / Pra na hora agá estar preparada / Essa decisão sobre a prevenção, sempre foi da pasta da Saúde até então / Faz pesquisa, cria uma campanha  informativa / Pega o seu tabu e exorciza / Sexo seguro é uma delícia, eu te garanto.”

De um cinismo apoiado em termos técnicos, a sanitarista Clarissa Girão (Luciana Paes) é uma das melhores personagens do novo programa e tem se destacado desde a estreia. “Eu pratiquei abstinência sexual até os 15 anos numa boa. Depois ficou um pouco complicado, né?” “Por opção ou por…?” quer saber o apresentador.

Paulo Vieira e Renata Gaspar estão mais à vontade e entrosados em suas diferenças. A graça é justamente que eles não ornem, não combinem, mas não como água e óleo: era preciso que eles se misturassem de fato para que as diferenças saltassem aos olhos, no contraste dos tons de vozes ou na elegância dela versus o escracho dele.

O quadro da defesa do consumidor com Veronica Debom é outro ponto alto, mas não funciona com qualquer produto. Achacadora, ela usa seus entrevistados como ponte para obter benefícios próprios. Na linguagem do jornalismo, isso é chamado de jabá (um presente em troca do elogio ou do silêncio do repórter), mas, no caso dela, também espelhado em profissionais da vida real, é mais que isso. Ela cobra da loja achincalhada pelo consumidor um produto para ela mesma, a fim de dar tudo como resolvido.

De novo aí esta terceira edição fez mais graça que as anteriores, agora com mãe e filha querendo satisfação sobre a interrupção do plano de dados móveis de internet de uma operadora que prometia “internet ilimitada”, como sabemos, uma fábula que só um órgão fragilizado de defesa do consumidor permite que seja anunciada como publicidade.

No meio da cena, a filha (Luana Martal), fica sabendo pela mãe (Luciana Paes) que o grupo da família do WhatsApp criou um grupo da família sem ela, e fica arrasada. Esses dramas atuais que parecem tão risíveis vistos a distância são boas oportunidades de piadas com algum frescor. Como diz Silvio Santos, bem bolado.

A imitação de Marcelo Crivella por Adnet funcionou muito e teve até reclamação contra a Globo, que segundo o prefeito de verdade, o persegue.

Enfim, foi possível rir, e até gargalhar.

Com menção à censura sofrida pelo filme “A Primeira Tentação de Cristo”, do Porta dos Fundos, os apresentadores entrevistaram o representante da Ordem dos Missionários Armados Municiados por Cristo, Alípio Fonteneles (Welder Rodrigues) (“que a paz de Cristo perfure vocês” é o lema dele), que quer censurar a própria Bíblia, já que ali Jesus anda cercado de bandidos e prostitutas. Outra meta do movimento é cobrir de roupas a imagem de Cristo, sempre branquinho, na cruz.

Na edição passada, ri menos, mas me peguei, ainda esses dias, brincando com a ideia de chamar um Equinus, versão de Uber inventada pelo programa, que pressupõe um cavalo como transporte.

Convém notar que o Fora de Hora fugiu de qualquer menção à nova secretária de Cultura do governo Bolsonaro, a ainda colega Regina Duarte (já que a Globo ainda negocia a rescisão dela), assunto em voga na última semana.

O programa também prestou uma homenagem à TV Cultura, quando os dois apresentadores se disseram da geração Cultura e cantaram dois versos de “Que som é esse”, da ótima trilha sonora do Castelo Rá-Tim-Bum.

Repertório para fazer rir não falta. A dificuldade tem sido selecionar o que pode render chacota em meio a esse farto material de pérolas do pensamento (ou da falta dele) produzido diariamente.

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