Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Francisco Cuoco seria Roque Santeiro, e tirou a sorte grande com a censura à novela em 1975

O ator Francisco Cuoco, morto em decorrência de falência múltipla dos órgãos, nasceu e cresceu no Brás, em São Paulo / Foto: Acervo TV Globo

Na longa homenagem que o Jornal Nacional prestou a Francisco Cuoco, morto nesta quinta-feira, 19 de junho, aos 91 anos, faltou dizer que o ator seria originalmente Roque Santeiro, personagem-título da novela de Dias Gomes em sua versão original. Era 27 de agosto de 1975 quando a Globo recebeu ofício da Censura Federal, uma prerrogativa do regime militar que controlou o Brasil entre 1964 e 1985, vetando a exibição da novela na véspera de sua data de estreia.

Como bem relembra a jornalista e escritora Laura Mattos no ótimo livro “Herói Mutilado – Roque Santeiro e Os Bastidores da Censura à TV na Ditadura” (Cia. das Letras), Cid Moreira leu editorial de Roberto Marinho no Jornal Nacional, denunciando a censura, naquela que foi a primeira demonstração pública de atrito entre a Globo e a ditadura.

Com o veto, a direção da Globo encomendou uma nova sinopse a Janete Clair, mestra em criar enredos acachapantes para seduzir a audência, e ela tirou da cartola, em questão de dias, uma das tramas de maior sucesso da TV brasileira, “Pecado Capital”. O elenco da produção seria automaticamente o mesmo do folhetim censurado.

Foi assim que Betty Faria, a Porcina daquela versão original de “Roque Santeiro”, virou Lucinha. E que Lima Duarte, o Sinhozinho Malta, assumiu o figurino discreto de Salviano Lisboa. A Cuoco, escalado até então para ser o próprio Roque, restou o taxista Carlão, que vivia o dilema de embolsar ou não a mala de dinheiro esquecida por um passageiro no seu carro. Na minha humilde percepção, o icônico personagem foi o melhor papel da carreira de Cuoco, ao lado de Herculano Quintanilha, “O Astro”.

(Parêntese: Não consigo pensar no Cuoco e no seu inconfundível turbante de “O Astro” sem cantarolar o tema de abertura – “Minha Pedra Ametista / Minha Cor, o Amarelo […] Mas sou sincero […]”)

(Parêntese 2: A canção de Paulinho da Viola impulsiona de maneira decisiva o bom enredo de Janete Clair naquela abertura de “Pecado Capital”, que anos mais tarde seria refeita, com gravação de Alexandre Pires. No remake, o próprio Cuoco voltaria como Salviano, antagonista de Carlão, que foi infinitamente menos magnético que o seu Carlão e que o próprio Salviano da versão de 75, vivido por Lima. Na ocasião, pesou para o downgrade de Salviano a contrariedade de Carolina Ferraz, a Lucinha da vez, em beijar o ator: sem química entre o par, o casal perdeu encanto).

Dez anos depois da censura a “Roque”, quando já estávamos em um primeiro governo civil – ainda que sem direito a voto direto para presidente da República -, a direção da Globo tirou “Roque Santeiro” da gaveta e fez dela um de seus maiores hits, com desenvolvimento de Dias Gomes e Aguinaldo Silva. E manteve apenas um nome do trio central original: Sinhozinho Malta seria de fato Lima Duarte, mas a viúva Porcina, papel que também viria a se tornar um dos ápices da carreira de Regina Duarte, já não tinha Betty Faria. Nem Roque pertencia mais a Cuoco, sendo então consagrado por José Wilker.

Sob todos os aspectos, o resgate de “Roque Santeiro” foi muito feliz – assim como a caipirinha que Janete Clair fez dos limões que azedaram  “Roque”, novela de seu marido, em 75.

Betty, como já se viu em algumas das poucas cenas gravadas como Porcina, emprestava à Viúva uma elegância que Regina aboliu, assumindo um tom espalhafatoso e nada discreto da personagem. E Roque ganhou a fina ironia que Wilker esbanjava, num viés bem distante do protótipo de galã perfeito encarnado por Cuoco.

Ainda sobre a trajetória de Cuoco, convém observar que ele foi, certamente, o mais galãs dos galãs brasileiros, pela longevidade e pela imensa lista de obras por ele estreladas, mas, sobretudo, pelo orgulho em ostentar esse título. Nas ultimas três décadas, a pecha do “galã” tem sido educadamente rejeitada pelos atores escalados para assumirem tal função na teledramaturgia. Ser galã passou a embutir a ideia de que o sujeito é só bonito ou charmoso, sem necessariamente exibir as nuances do ofício. E estereótipo, seja ele qual for, sempre engessa a margem de criação do profissional e de imaginação de diretortes e autores responsáveis por escalações de elenco.

Tarcísio Meira (1935-2021) também foi tratado à exaustão como galã, mas alternou mais tipos que Cuoco, fazendo não só drama e comédia, ou o bom e o mau, mas também o feio – graças à competência de maquiadores. Vide o repulsivo Dom Jerônimo de “A Muralha” (2000, Maria Adelaide Amaral).

Cuoco mal escapou do crachá de galã, mas nunca pareceu se incomodar com isso – muito pelo contrário: o ator foi feliz como tal.

 

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