Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Gilberto Braga desfilava humor mais ácido que seus personagens, sem filtro

O autor Gilberto Braga em seu apartamento / Alex Carvalho/Canal Viva

Quem via ironia e acidez nos personagens de Gilberto Braga, que morreu nesta terça-feira (26), no Rio de Janeiro, aos 75 anos, talvez não saiba que ele próprio esbanjava tais propriedades por trás das câmeras e de uma maneira bem mais potente do que exibia em seus enredos. E dispensava qualquer filtro. O criador era ainda mais sincero que suas criaturas, sem jamais perder a elegância.

Sem meias-palavras, criticava aquilo de que não gostava, sem poupar a si próprio, o que legitimava sua opinião sobre tropeços alheios.

Tive a grande felicidade de fazer uma longa entrevista com ele em 2014, acompanhado por Ricardo Linhares e João Ximenes Braga naquele seu apartamento cuja janela emoldurava o Arpoador. Do escritório onde nasceram figuras eternizadas na nossa memória afetiva, como Odete Roitman, Felipe Barreto, Maria de Fátima Acioli, Bebel ou Júlia Matos, ele podia ver as centenas de espectadores que disputavam espaço na pedra ali em frente para ver o pôr-do-sol, espetáculo que se repetia religiosamente, bem ao alcance de sua vidraça.

Foi lá que em uma tarde de sábado falamos sobre “Babilônia”, sua última novela, produção que teria sido muito melhor do que foi, caso a direção da Globo não tivesse feito bruscas intervenções no enredo. Assustada com o bom desempenho de “Os Dez Mandamentos” pela Record, a emissora tentou curar gay ao desfazer a trama do personagem de Marcos Pasquim e sacramentar garota de programa, transformando Sophie Charlotte em mocinha.

Mas o ponto mais frágil das reformas foi dar ao casal octagenário de lésbicas, criado para ser uma lição ao preconceito de gênero, uma relação de duas irmãzinhas. Um beijo no primeiro capítulo teria afastado grande parcela do público.

O erro só foi percebido após ato consumado: para calar de cara aquele diz-que-me-diz sobre ter ou não beijo gay na novela, os autores resolveram exibir logo no primeiro capítulo uma cena de afeto entre Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg, mas, em vez disso, o público, que não teve prazo para conhecer suas personagens, logo associou aquela imagem ao histórico consagrado das duas veteranas na vida real.

A seguir, narro alguns episódios de Gilberto que endossam o caráter sem filtro de alguém que sabia bancar seus posicionamentos e nos divertia com o olhar ácido sobre tudo.

SOBRE ‘BABILÔNIA’

No meio de “Babilônia”, Gilberto deu uma entrevista ao jornal O Globo e debochou de algumas alterações feitas na novela. Chegou a dizer que pesquisas de grupos de discussão feitas em São Paulo haviam determinado que Pasquim não deveria ser gay, pois as donas de casa idolatravam o rapaz e ficariam desiludidas. Mas os “paulistas”, para o autor, tinham gosto estranho, como apreciar Jamanta, aquele personagem de Cacá Carvalho na novela “Torre de Babel”, assinada por Silvio de Abreu, então seu chefe na Globo.

Escrevi-lhe um e-mail confessando profunda inveja da entrevista dada ao O Globo, e aproveitei para dizer que eu, paulistana, tampouco  gosto do Jamanta.

No dia seguinte, Silvio de Abreu me mandou um e-mail bem-humorado em que protestava: “bonito, dona Cristina, falando mal do Jamanta com Gilberto pelas minhas costas”. “Mas que fofoqueiro”, respondi a Abreu, achando graça da situação, que só corroborava o quanto Gilberto estava desconfortável com as alterações feitas na sua novela.

SOBRE ‘O DONO DO MUNDO’

“Babilônia” estava longe de ser a primeira novela na qual a direção da Globo tentava operar mudanças drásticas. O autor costumava dizer que considerava o início do “Dono do Mundo”, um dos poucos folhetins seus protagonizados por homem, a sua melhor obra. Gilberto se viu forçado a ceder à pressão de quem via a personagem de Malu Mader, mocinha da história, como uma “galinha”, por ter se rendido às cantadas do vilão Felipe Barreto (Antonio Fagundes), que estaria então apenas “cumprindo seu papel” de macho ao apostar a virgindade da heroína logo após o casamento dela com um funcionário seu.

Gilberto obedeceu às demandas da audiência conservadora e transformou Felipe Barreto em uma boa, porém falsa alma. Quando a novela terminou, o autor deu um safanão no moralismo do público ao mostrar que o vilão carregava então mais uma suposta invicta para o altar: “e é virgem!”, dizia ele para a câmera no último capítulo.

SOBRE ‘ESCRAVA ISAURA’

Quando lhe perguntei se ele havia recebido tudo a que tinha direito por “Escrava Isaura”, que por anos liderou as exportações da Globo, disse: “assinei um mau contrato”. A novela de 1976, baseada no romance de Bernardo Guimarães, seria a primeira produção de larga exportação da Globo, que nunca, até ali, havia tido noção de que um título como aquele poderia viajar o mundo. Gilberto contou que emissários da Globo um dia o chamaram para lhe pagar uma boa quantia, mas ele sabia que o montante era menos do que teria a receber.

SOBRE ‘VALE TUDO’

Contou que foi Odete Lara a primeira opção para Odete Roitman. “Mas ela era como eu: não gostava de trabalhar. E não aceitou o convite”, disse-me. Enquanto lia uma lista de nomes e seus intérpretes, em uma reunião na fase anterior às gravações, mas já com boa parte de elenco e equipe sentadas em volta de uma mesa, o diretor Paulo Ubiratan (1947-1998) parou em “Odete Roitman”, fez uma pausa, olhou ao redor e perguntou: “Beatriz Segall?” Todos concordaram na hora com a surpreendente sugestão.

Menos Daniel Filho, que, no relato de Gilberto, jurava que Segall não daria conta do papel. “Mesmo com a novela fazendo todo o sucesso que fez com Beatriz, ele continuava insistindo que ela não era tão boa: o personagem é que era muito forte.”

Em 2018, quando conversamos pela última vez para falar sobre a volta de “Vale Tudo” ao canal Viva, ele diagnosticou o sucesso atemporal da trama, escrita com Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, como efeito de um Brasil que não havia avançado, a despeito de tantas demonstrações de esperança alguns anos antes.

RÓTULO DE RICO

Detestava a fama de escritor do universo de ricos. Dizia que seu ideal de cenário era o apartamento apertado de Damasceno (Geraldo Del Rey) na minissérie “Anos Rebeldes”. No ótimo livro “Anos Rebeldes: Os Bastidores de Criação de uma Minissérie”, escreveu:

“A casa de Damasceno, personagem de Geraldo Del Rey, é o tipo d ambiente que sei descrever melhor, não tem glamour algum. Meu psicanlista acompanhou bastante a minissérie e ele me dizia, sobre as cenas na casa do Damasceno: ‘Gilberto, istgo é a minha casa’. Ele é um intelectual de esquerda, e esse é o clima das coisas que eu conheci na minha juventude, casas bagunçadas da classe média de Copacabana. Agoro isso. Ser considerado o autor dos ricos me irrita um pouco. Qualquer rótulo, aliás, me irrita, é uma simplificação”.

Ao mesmo tempo, dizia que não poderia parar de trabalhar porque tinha altas taxas de condomínio a pagar nos apartamentos que mantinha em Nova York, Paris e Rio de Janeiro.

TRILHA SONORAS

Sempre teve o hábito de dar pitaco nas trilhas de suas novelas, e fala abertamente sobre o assunto no também ótimo livro de Vincent Villari e Guilherme Bryan, “Teletema”, onde confessou várias contrariedades que teve com o assunto. Dizia não gostar de “Amanhã”, música de Guilherme Arantes, na voz do compositor, que virou tema de Júlia Matos (Sônia Braga) em “Dancin’Days”.

Mas então admitia que poderia estar errado, já que Caetano Veloso depois regravou a canção, o que deixava evidente que sua resistência era a Arantes e não à música.

Muitas foram as canções encomendadas especialmente para suas obras. Para se ter uma ideia, Tom Jobim fez a abertura de “Anos Dourados” (1986) especialmente para a série homônima, mas Chico Buarque, que deveria fazer a letra, não alcançou inspiração em tempo hábil e só entregou a letra depois que a minissérie acabou.

É por isso que na exibição original, a série com Malu Mader e Felipe Camargo foi originalmente exibida apenas com a canção instrumental durante seus 20 episódios.

PARAÍSO TROPICAL

Em geral, os autores evitam falar sobre as primeiras escolhas de atores para os seus personagens, a fim de não chatear os profissionais escalados como segunda ou terceira opção para os papéis. Para ele, isso não era problema. Não escondia que sempre quis Cláudia Abreu para fazer as gêmeas Paula e Thaís, que acabaram nas mãos de Alessandra Negrini, em razão da gravidez de Cláudia na época.

Foi contrário à escalação de Wagner Moura como Olavo, que viria a se tornar o grande hit da novela na parceria com Camila Pitanga (Bebel), e confessou o erro após o sucesso alcançado. Gilberto achava Moura franzino para o papel, longe do estereótipo de galã desejado para duelar com Fábio Assunção,o mocinho da trama.

ANOS REBELDES E CENSURA

Ainda no livro “Os Bastidores da Criação de uma Minissérie” (Ed. Rocco), descreve em detalhes o processo de censura política sofrido no enredo protagonizado por Cássio Gabus e Malu Mader. Conta então que pouco antes de “Anos Rebeldes”, Dias Gomes havia sofrido corte de quatro capítulos na adaptação de sua peça “O Pagador de Promessas”, para a TV.

“[…] Tinha medo de escrever e, depois, que as cenas fossem cortadas por alguém. Cláudio Mello e Souza foi a pessoa que Roberto Marinho encarregou de ler algumas partes do roteiro. Seu parecer dizia que, do décimo ao décimo quarto capítulo, estávamos carregando demais nas tintas políticas. O fato é que, a partir do final do oitavo capítulo, entramos em dezembro de 1968, justamente quando foi decretado o AI-5. A partir dali, a situação geral do Brasil mudou muito. Era natural que a série ficasse mais pesada; precisávamos acompanhar a realidade. Até então, as coisas não eram tão sinistras. Cláudio deu um sinal amarelo e Boni conversou comigo. Pediu que reescrevêssemos.[…]”

Em sua época de exibição, de 14 de julho a 14 de agosto de 1992, “Anos Rebeldes” inspirou, juntamente com o tema de abertura “Alegria Alegria”, hit de Caetano Veloso de 1967, as manifestações populares dos chamados caras-pintadas que foram às ruas pedir o impeachment de Fernando Collor.

 

 

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Cristina Padiglione

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