‘Guerreiros do Sol’ exibe uma qualidade cada vez mais rara na TV brasileira

Folhetim que foi originalmente produzido para o streaming do Grupo Globo, “Guerreiros do Sol” tem previsão de chegar à TV aberta em algum momento que ainda não sabemos qual será, provavelmente em 2026.
À primeira vista, o que salta aos olhos é uma altíssima qualidade que já foi mais presente na televisão, especialmente na Globo. O choque positivo provocado pela novela de George Moura e Sérgio Goldenberg – dupla que assinou títulos como “Amores Roubados”, “Onde Nascem os Fortes” e “Onde Está o Meu Coração” – é inevitável para o espectador.
Sim, sabemos que a fartura da publicidade hoje se dilui entre muitas telas e formatos, e isso naturalmente pesa no equilíbrio sustentável do negócio. Já não é possível gastar como se gastava antes para a produção de novelas feitas sob ritmo industrial.
Uma obra audiovisual será tão melhor acabada quanto maior for o número de diárias pagas à equipe e elenco para preparação, gravação e pós-produção de seus episódios. Uma cena que pode ser gravada e regravada à exaustão, sem a preocupação de limites muito rigorosos de prazos, tende a ficar melhor. Essa é uma prerrogativa que cabe melhor no ritmo do streaming do que da urgência da TV aberta. Mas toda produção tem seu custo e um calendário a cumprir dentro do contexto financeiro.
Os resultados excepcionais em geral são alcançados com alguma folga de orçamento, mas nem todo grande investimento gera obrigatoriamente algo incrível. Se “Guerreiros do Sol” parece exibir mais orçamento do que “Vale Tudo”, por exemplo, só para citar a atual novela das 9, convém atestar que o dinheiro então foi muito bem investido.
Os diálogos de Moura e Goldenberg são de um primor já conhecido de seus outros enredos. Há afeto e conflitos no cotidiano de seus personagens, como mandam os preceitos da dramaturgia, mas também sobram filosofia e reflexões em cada conversa. A gente tem o ímpeto de anotar algumas frases para o caderninho da vida.
A direção de Rogério Gomes, o Papinha, é qualquer coisa fora do normal na TV atual. Após vários feitos na Globo, ele deixou a emissora após construir o conceito super aclamado do remake de “Pantanal”, e retornou com contrato por obra certa para fazer “Guerreiros”. Luz, fotografia, direção de atores? A gente vê por ali.
Faça-se a ressalva de que nem sempre meus ouvidos urbanos conseguem capturar todas as palavras sussurradas pelos personagens daquele sertão, mas tudo se faz compreender no contexto final, exatamente como se dá com as narrativas de Riobaldo que Guimarães Rosa pontua ao sabor do ritmo de sua prosa cangaceira.
A associação com “Grande Sertão” me vem pela figura de Miguel Ignácio, batismo do irrepreensível Alexandre Nero nesse enredo. O nome composto remete a uma espécie de Joca Ramiro, o que já aquece a alma do espectador e gera respeito pelo personagem.

Alexandre Nero é Miguel Ignácio, que se faz presente mesmo quando ausente, e Thomás de Aquino é o mocinho dito bandido do enredo, o herói Josué / Divulgação
Na voz da doce e assertiva Rosa, Isadora Cruz carrega a função de narradora, mas os autores escapam com louvor da cilada de tornarem a obra refém desse recurso. O desenrolar da trama, aliás, dispensa a leitura dela na maior parte do tempo, valorizando suas intervenções.
Que maravilha assistir às entregas da atriz.
E que explêndido é testemunhar a performance de Alice Carvalho, alguém não menos que magnífica na contenção gestual de sua Otília, irmã de Rosa. Que interpretação delicada ela nos traz, sem resvalar na fragilidade – muito pelo contrário. A performance de Alice torna-se ainda mais encatadora para quem a viu na pele da explosiva Dinorah, papel que a projetou para a fama nacional na ótima série “Cangaço Novo”, obra de Mariana Bardan e Eduardo Melo, escrita com FernandoGarrido e Erez Migrom, com direção de Fábio Mendonça e Aly Muritiba produzida pela O2 Filmes e a Prime Video (opa, fica também essa dica: quem não viu, corre lá pra ver).
O time feminino que nos orgulha tem ainda Alinne Moraes como Jânia, sábia e generosa, que pega na mão de Otília – e do público – para nos conduzir pelo caminho que nos leva ao prazer do conhecimento por meio da leitura.
E há ainda Valiana, papel de Nathalia Dill, que nos põe a pensar como uma mulher lidava com a percepção de um caroço no seio no meio daquele sertão, sem Google que abastecesse suas aflições e, pior, sem médico disposto a investigar o seu mal. Quanta dor há na sua história.
A presença dessas mulheres pede um time masculino à altura, com líder idem, e ele está lá. Josué é pura testosterona, graças ao biotipo e ao talento do nosso Thomás Aquino. Entre o mocismo e o banditismo, Josué justifica seus atos como um Robin Wood do sertão, mais respeitado do que temido.
Moura e Gold não se contentam em criar o conflito que o separa de sua Rosa, moça cobiçada e conquistada pelo coronel Elói. Viúvo beirando o sujeito asqueroso, ele logo será transformado em homem ligeiramente melhor pelas mãos da nova esposa. O público, claro, há de torcer pela morte dele, a fim de ver a mocinha com seu cangaceiro movido à justiça social.
Mas Josué enfrenta ainda a ira e a inveja do irmão primogênito, Arduíno, um tinhoso Irandhir Santos, ressentido pela liderança nata do irmão.
O repulsivo Arduíno, no entanto, é também o homem que afaga a pobre Valiana, outrora viúva de um traste que atendia como delegado local.
Há os malvados completamente malvados, sem pontos fracos, como Idálio, vivido por Daniel Oliveira, e o medíocre Bosco, papel de Luiz Carlos Vasconcelos. Há os bons completamente bons, como Otília, Jânia e Valiana. De modo geral, no entanto, “Guerreiros” evita flertar com o maniqueísmo, como bem demonstra a aceitação que o coronel Elói vai ganhando ao longo dos capítulos.
As nuances se mostram de modo orgânico, sem que nos pareça algo impossível para aquelas figuras naquele devido tempo.
Tudo se faz primoroso em “Guerreiros do Sol” – dos diálogos aos planos de câmera, com performances dignas de cada linha e take. Basta dizer que embora estejamos falando de um movimento do século 19 no sertão brasileiro, as histórias ali representadas nos remetem ao nosso presente – e isso é, na verdade, uma confissão infortúnia: mais de um século depois, seguimos discutindo se é justo que os mal remunerados arquem com a mesma quantia dos bilionários na oneração dos impostos pagos.
A presença de um time feminino de colaboradoras em torno da dupla de autores masculinos, com Cláudia Tajes, Mariana Mesquita, Ana Flávia Marques e Dione Carlos (além de Marcos Barbosa), certamente pesa na sensibilidade desfilada pelas mulheres em cena.
São 45 capítulos para conduzir espectadores a um universo onde até o silêncio nos diz muito e nos alimenta de reflexão.
Divirtam-se.