Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘Hebe’ chega à TV aberta pronta para ser endeusada ou desmitificada

Andréa Beltrão como Hebe / Divulgação

“Hebe”, a série, que chega à TV aberta nesta quinta-feira (30), embute cenas do filme, dirigido, produzido, escrito e representado pelo mesmo time, mas a abrangência das épocas retratadas nas duas produções traça grande diferença entre as duas obras.

Escrita por Carolina Kotscho com direção de Maurício Farias, a série abocanha toda a vida da apresentadora, desde os primeiros acordes no rádio, enquanto o filme é o recorte de dois a quatro anos da vida da estrela nos anos 1980, da mudança da Bandeirantes para o SBT, seu auge.

A primeira cena da série já prenuncia essa distinção, quando vemos a Hebe de Andréa Beltrão se mirando no espelho, carequinha, em sequência entrecortada com uma última entrevista a Marília Gabriela (Fabiana Gugli), com quem ela esteve como entrevistada e entrevistadora em várias ocasiões.

Convivi bastante com a Hebe original. Fui setorista do programa dela no SBT em meu início de carreira, e toda semana era enviada pela Folha da Tarde para registrar as cenas de seu auditório. Estive em celebrações e encontros para entrevistas tanto na casa antiga, enquanto ela foi casada com Lélio Ravagnani (vivido brilhantemente por Marco Ricca), e na casa onde ela morreu, ambas no Morumbi.

Ouvi vários comentários contrários a algumas passagens do filme e da série, inclusive do filho único dela, Macello Camargo, que contestou a versão de que Hebe nunca bebeu em seu camarim antes do programa, como é mostrado no filme. Outras: “ah, ela não bebia uísque, bebia vodka, champagne ou caipirinha, mas não uísque”.

Sim, várias passagens são representativas de momentos vividos pela apresentadora, mas não são inverossímeis. Várias sequências sintetizam pensamentos e atitudes de fato protagonizados pela loira que era morena, não necessariamente no local ou no tempo em que são apresentadas na ficção.

Carolina Kotscho, a roteirista, extraiu os diálogos e situações de 40 entrevistados, incluindo o próprio Marcello, e de cerca de 3 mil recortes de jornais colecionados por uma fã. Hebe tinha, e ainda tem, um time muito fiel de seguidores (físicos, já que naquele tempo não havia rede social), e todos tinham vagas cativas em seu auditório toda semana. Tratava-os por seus nomes. No intervalo, dirigia-se pessoalmente a elas e a eles, distribuía flores, apertava bochechas e inundava a vaidade de todos com seu “gracinha!”.

Vi isso no SBT e também na RedeTV!, pouco depois de fazermos nossa última entrevista, ainda para o Estadão, em seu camarim, na presença do sobrinho Cláudio Pessutti.

Acontece que muitos fãs que acompanhavam Hebe fielmente, mas nem tão de perto, estranharam a afeição dela a bebida mostrada no filme. Ouvi amigas da minha mãe se queixando: “mas o filme retrata a Hebe como uma alcoólatra?” Não, retrata com o apreço que ela tinha por uma boa taça, o que nunca escondeu de ninguém, sem jamais dar qualquer vexame por isso. Ou então: “Aquele marido, violento daquele jeito, e ela aceitava?”

Não, não aceitava. Série e filme retratam a relação conturbada com Lélio e Décio. Sim, ela curtia beber, mas não bebia antes do programa. A cena do filme contestada pelo filho se refere a uma passagem conflituosa com o então diretor Walter Clark nos bastidores da Bandeirantes. O copo de uísque foi um meio de ilustrar a tensão da situação que precedeu sua saída da emissora dos Saads.

Como bem lembra o diretor Maurício Farias, isso não é documentário, é uma ficção baseada na vida de uma figura de grande comoção e sem vínculo a rótulos: elogiava e paparicava o conservador Paulo Maluf, mas posicionava-se publicamente favorável à descriminalização do aborto e ao respeito à diversidade, num tempo em que isso custava muito caro à imagem de alguém famoso.

A série, como o filme, vale a pena ser vista porque Andréa Beltrão capturou a alma de Hebe, assim como Ricca faz um Lélio perfeito para os padrões da alta sociedade paulistana daqueles dias, quando, mais do que hoje, era chique ostentar relógio e carrão no Gallery e debochar das “bichonas”.

Ricca contou em entrevista virtual promovida pela Globo que Luís Gustavo o ajudou muito na construção do personagem, mas ele, paulistano da gema, conhece bem aquela sequência de “erres” com que pronuncia “porrrrrra” quase como vírgula quando fala. E lembrou que uma vez, quando esteve no sofá da loira para divulgar uma novela do SBT, ao lado da atriz Bete Coelho, se recusou, como a colega, a apertar a mão de Maluf, gesto que hoje ele reconhece ter sido uma “grosseria”.

Farias optou ainda por fazer com que cada ator cantasse de verdade nas cenas em que representam cantores, e o caso mais desafiador certamente coube a Felipe Rocha, que vive ninguém menos que Roberto Carlos.

Dona de uma trajetória que hoje pode ser vista com elementos ainda mais contraditórios que na época, Hebe provoca fascínio por ter um histórico honrado por uma mulher muito à frente do seu tempo, mas causa também decepções de quem a conhecia só pela tela da TV, cheia de brilho, jóias, salto alto e muita gargalhada.

Como compreende um período maior de sua vida, a série desmitifica um bocadinho mais que o filme a imagem que parecia intocável desta personagem que é uma aula sobre aparências versus vida íntima e sobre o ônus de se posicionar de acordo com seus princípios.

Particularmente, acho a série até mais instigante porque é onde o espectador acompanha aquela trajetória de Cinderela, no sentido de conferir a superação de quem partiu do nada para alcançar grandes conquistas.

Hebe vai ao ar às quintas, às 22h35, após “Fina Estampa”, em 10 episódios

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