Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘Holocausto Brasileiro’ diz respeito a todos nós: no ar pelo canal MAX

Por 80 anos, um hospital que funcionou com a finalidade contrária à de um estabelecimento do gênero – matando, em vez de salvar pessoas – funcionou sob os olhos de toda uma cidade, sem que ninguém se mobilizasse para botar um fim naquele cenário. “Holocausto Brasileiro”, documentário que a HBO teve a iniciativa de produzir, com base no livro homônimo de Daniela Arbex (de 2013), ganha a tela do canal MAX na noite deste domingo, 20 de novembro, às 21h.

“Holocausto Brasileiro” é um programa para provocar a consciência de toda a gente, e não só no quesito comemorado na efeméride do dia, a Consciência Negra, embora a grande maioria das vítimas do hospital Colônia, de Barbacena (MG), fosse justamente negra ou descendente de negros. Dizem que o local nasceu como clínica privada de luxo para tratamentos de doenças causadas pelas grandes epidemias que de tempos em tempos assolavam o Rio de Janeiro, e logo foi se consagrando como manicômio de luxo. Mas, vendido para o estado nos anos 30, o negócio degringolou. Virou um depósito de todo tipo de gente, doente ou não, que fosse indesejável socialmente. Uma das personagens do filme, doméstica, conta que foi engravidada pelo patrão e ele conseguiu interná-la lá, por suposta insanidade mental. Separada do filho, só foi reencontrá-lo 40 anos depois. Outro descobre, já senhorzinho, que o pai internou a mãe no local, sem que ele nunca tenha sabido disso. Homossexuais, prostitutas e mendigos se apinhavam por aqueles pátios e corredores. Sem recursos, sem vigilância alguma, sem higiene, internos dividiam a mesma seringa para os remédios injetáveis, tomavam choques elétricos como “terapia”, a cada vez que se rebelavam, e muitos eram retirados durante o dia para prestarem serviços fora do hospital, na esfera doméstica e na construção civil, sem remuneração, sendo devolvidos ao local no final do expediente. Um grupo de freiras, sob o pretexto de ajudar, passavam por lá, habitavam o quarto mais limpo e amealhavam “colaboradoras” para fazer bordados e afins, que vendiam, sem repassar esse dinheiro ao hospital.

As doenças se espalhavam, as mortes se multiplicavam e um cemitério bem ao lado do hospital denunciava sua vocação para o óbito. “Holocausto Brasileiro” evidencia ainda que os corpos eram vendidos, e não doados, como até então se afirmava, para faculdades de medicina. Figuras que testemunharam esse horror relatam as práticas no local, como se estivessem contando uma história concebível, aceitável. E de fato era. Por quase oito décadas, uma cidade inteira fingiu não se incomodar com aquilo e o poder público, tampouco. Foi preciso que o psiquiatra italiano Franco Basaglia escrachasse o Colônia e que a imprensa entrasse em campo para encerrar a sina de Barbacena. O fotógrafo Luiz Alfredo, do jornal “O Cruzeiro”, exibe suas imagens no filme. Ele retratou a realidade dentro do Colônia por um período de tempo, trazendo a público o que ocorria no interior dos muros do “hospital”. Uma linha de trem que levava as vítimas até lá corrobora a ideia de holocausto. Ouvidos também no documentário são o jornalista Hiram Firmino, que publicou diversas reportagens intituladas “Nos porões da loucura”, em 1979, e Helvécio Ratton, que de lá vez o filme “Em Nome da Razão”.

Assisti ao programa ainda sem legendas, recurso que deveria ser incluído na versão final, para tornar mais claros alguns relatos. Dos sobreviventes do Colônia ouvidos em cena, só uma possui dentição. Os demais mal se fazem entender. Se os canais de TV em geral acham que comédias e programas leves aliviam o peso da segunda-feira, convém inverter a lógica e ver “Holocausto Brasileiro” para perceber que nossos problemas são ínfimos e que o mundo já foi bem mais cruel que hoje.

 

 

Cristina Padiglione

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