Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Isis Valverde revive Angela Diniz com expectativa de combater feminicídio

Isis Valverde em 'Angela'. Crédito: Divulgação

Demorou.

Só no mês passado, após uma extensa lista de crimes cometidos sob o argumento da “legítima defesa da honra”, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional o uso do argumento em feminicídios julgados no tribunal do júri. Sim, parece impensável que por tanto tempo isso tenha servido como justificativa legal para autorizar alguém que se sentia rejeitado a matar seu par, algo que invariavelmente transformava algozes em vítimas.

Nesse contexto, vem muito a calhar a estreia de “Angela”, filme de Hugo Prata estrelado por Isis Valverde, que chega nesta quinta-feira, um tranquilo 7 de Setembro, ao circuito nacional de cinemas no Brasil. O enredo trata justamente da história de uma paixão que termina em um dos casos de assassinato mais famosos de todos os tempos no Brasil, em que o assassino alegou defesa da própria honra para apertar o gatilho, e foi acolhido pela (in)Justiça.

Com roteiro de Duda de Almeida, o longa-metragem se concentra nos últimos meses de vida da “Pantera de Minas”, como Ângela era conhecida, e nas consequências de sua conturbada relação amorosa com o empresário Raul Fernando do Amaral Street, mais conhecido como Doca Street, aqui interpretado por Gabriel Braga Nunes.

O elenco conta ainda com Bianca Bin, Emílio Orciollo Netto, Chris Couto, Gustavo Machado, Carolina Manica e Alice Carvalho. A produção é da Bravura Cinematográfica, com coprodução da Star Productions.

VIDA REAL

Antes de cruzar o caminho de Doca, Angela já havia arcado com o ônus de perder a guarda de seus três filhos para conquistar o que na época se chamava de “desquite”, uma prévia do que viria a ser legalmente o divórcio. Ao conhecer Doca, ela vivia um relacionamento com o colunsita social Ibrahim Sued, pioneiro na atividade de noticiar festas, casamentos, romances e separações, sem um décimo da concorrência e da vulgaridade que se desenham no ramo hoje. No filme, o personagem é vivido por Gustavo Machado.

Naquele mundo dos anos 1970, a influência de Ibrahim na alta sociedade do eixo Sul-Maravilha de São Paulo e Rio de Janeiro era incontestável.

Angela conheceu Doca em uma festa organizada pela então esposa dele, Adelita Scarpa (Carolina Mânica). Os dois se encantaram um pelo outro e abandonaram seus pares para viverem uma grande paixão. Mas logo ele se mostraria incapaz de lidar com o senso de liberdade dela, embora tenha sido em boa parte atraído por isso. Angela foi assassinada por ele em dezembro de 1976, aos 32 anos, em sua casa de praia, em Búzios, no litoral fluminense, apenas quatro meses após o início do romance.

À época, não faltou quem corroborasse as razões do assassino, “coitado”, e tratasse a vítima como “vagabunda”, papel endossado pelo fato de ela ter concordado em ceder ao pai de seus filhos a guarda das crianças como condição para se desquitar dele.

Na justiça, Raul argumentou que matou por “legítima defesa de honra” e foi condenado a uma pena simbólica de dois anos. Com gritos de “Quem Ama Não Mata”, a morte de Ângela gerou revolta em muitas mulheres no país e revolucionou o movimento feminista do Brasil. Em 1981, um promotor recorreu e Raul foi condenado por homicídio a 15 anos de prisão em regime fechado.

O FEMINICÍDIO NO PAÍS CORDIAL

Em 2022 foram registrados 3.930 casos de assassinatos de mulheres no Brasil, um crescimento de 5% em comparação com o ano anterior. Foi o recorde de registros desde 2015, quando entrou em vigor a lei de feminicídio no país. Apenas em 2008 crimes de defesa contra a honra deixaram de ser passíveis de perdão perante a lei nacional, e só em 2021 o feminicídio tornou-se um crime hediondo.

Ao abraçar a ideia de contar essa história, o diretor Hugo Prata diz nunca ter pensado em outro nome para viver Angela que não fosse Isis Valverde. “por sua força, talento e sensibilidade”. “Fiz o convite logo no início do projeto, ela aceitou na hora. Escrevemos o roteiro para ela. Foi um grande acerto, o resultado ficou sublime”, diz Prata.

Valverde recebeu a proposta ainda quando gravava “Amor e Mãe”, novela de Manuela Dias que atravessou a pandemia.

Embora o caso tenha motivado movimentos feministas à época, essa reação veio ainda de modo insuficiente, e o diretor tem boas exepctativas de que o filme possa afetar a conscientização de todos sobre o tema. “Os casos de abuso e feminicídio continuam acontecendo diariamente. Espero que o filme ajude  a mudar isso.”

A roteirista, Duda de Almeida, conta que buscou “entender quem era a Angela através de relatos de amigas dela”. “Era uma mulher com muitas amigas, e muito amada por elas, divertida, engraçada, tinha um humor ácido, aventureira, verdadeira, franca e muito honesta com os seus próprios desejos.”

Almeida assina a série brasileira mais vista da Netflix, “Sintonia”, e acompanha Prata também em outra produção, a série “As Aventuras de José e Durval”, série biográfica sobre Chitãozinho e Xororó, em cartaz no GloboPlay.

“Quando ele me chamou para fazer o filme inspirado na história Ângela Diniz, ele propôs um recorte diferente, uma espécie de peça de teatro dentro do filme. Ele queria mostrar como deve ter sido a vivência de Angela ao lado do Raul, especialmente na casa de praia. Eu vi uma oportunidade de mostrar como uma história de amor pode virar uma história terrível. Infelizmente, nós, mulheres, já ouvimos ou já até vivemos relacionamentos tóxicos, não exatamente com esse desfecho trágico, mas é uma realidade ver de perto esse tipo de relação. Essa é uma questão estrutural da nossa sociedade, que é atravessada por questões de gênero, de raça e de vulnerabilidade social. Eu acho que é muito pertinente fazer um filme com esse assunto, já que no Brasil ainda temos um número altíssimo de feminicídio. Acredito também que o audiovisual é uma grande porta de entrada para falar sobre questões tão delicadas.”

Isis Valverde concorda: “A história da Ângela Diniz deve ser contada e lembrada sempre para que possamos mudar as coisas. Como atriz, acredito muito no papel social que meu trabalho desempenha. Falar sobre feminicídio é muito importante, especialmente em um país onde as taxas deste crime são alarmantes.”

“Provocar mudanças também é meu papel como atriz.”

A preparadora Fátima Toledo, famosa pelos métodos controversos que aplica nos atores, mas também pelos competentes efeitos alcançados em cena, cuidou de Isis no trabalho para o papel. “Mergulhei muito fundo nos meus sentimentos”, diz a atriz, “no que eu entendo sobre tornar-se mulher, sobre as violências às quais somos submetidas diariamente. Sem contar o trabalho de corpo, porque temos algumas cenas mais físicas no longa. Para contar essa história, não tinha como ser diferente. Tudo isso mexeu muito comigo emocionalmente.”

 

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Cristina Padiglione

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