Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Manoel Soares é o cara: estreia como apresentador amplia voz preta na maior rede do país

Manoel Soares no cenário do É de Casa. Foto: João Miguel Jr./Divulgação

Nascido em Salvador, filho de pai traficante e de mãe vendida na infância, Manoel Soares é a tradução do que se chama de resistência, antes de mais nada, e de resiliência. “Sou um desses brasileiros que tem como objetivo principal ficar vivo”, disse ele na nossa conversa de mais de uma hora.

Recebi uma palestra de graça sobre superação na sua essência mais realista, longe de teses e teorias, que vale reproduzir aqui como relato em primeira pessoa.

Neste sábado (12), aos 40 anos, pai de quatro filhos biológicos e dois afetivos, o ex-morador de rua, co-fundador da Cufa (Central Única das Favelas), que começou a fazer contatos na TV na função de faxineiro, estreia como apresentador interino do “É De Casa”, programa da Globo.

Caberá a Manoel cobrir a ausência de André Marques durante a atuação do colega na nova temporada do “The Voice Kids”, que estreia domingo (13). Mas, a depender de seu desempenho no novo papel, passa, no mínimo, a ser um nome reserva para o time de titulares, com boas chances de vir a ser também um titular em curto prazo.

Vontade da direção da Globo em ampliar uma voz como a dele não falta. Nunca foi tão forte a pressão da sociedade civil pela representatividade da diversidade de cores em todos os setores, e a televisão é vitrine primordial para corrigirmos, muito tardiamente, as gigantescas distâncias perpetuadas pelas relações entre a casa grande e a senzala.

Manoel não é só mais um nome no time afro que a Globo busca ampliar. É um ativista da causa, fã de Nelson Mandela e Desmond Tutu, no melhor sentido de um conciliador que almeja harmonia entre pretos e brancos.

O público já o conhece do Encontro e do próprio É de Casa há pelo menos dois anos, como repórter. Ele tem ciência de que estará na apresentação a serviço da pauta de um programa que já tem cara própria, não entra ali como ativista, mas digo que sua experiência de vida, muito diferente das de Patrícia Poeta e Cissa Guimarães, afeta de modo muito positivo a pluralidade da conversa. É um efeito que temos experimentado, com louvor, no Papo de Segunda, pelo canal GNT, onde Emicida muitas vezes desmonta conceitos que pareciam tão sólidos para os demais participantes, todos bem criados no asfalto da zona sul carioca.

O próprio Manoel se surpreendeu com a confiança que lhe foi conferida pelo diretor da Globo Amauri Soares quando o incumbiu de fazer uma apresentação para a exibição do filme “Pantera Negra” no Tela Quente do último dia 31 para homenagear Chadwick Boseman. Amauri lhe deu apenas o tempo que lhe caberia e pediu que não deixasse de dizer o nome do filme, sem querer saber o teor de seu discurso sobre o astro, morto então na sexta-feira anterior.

Abro, a seguir, seu relato em primeira pessoa sobre de onde veio, por onde passou e como chegou aonde chegou.

ORIGEM

“Nasci na periferia de Salvador, sou um dos brasileiros que tem como objetivo principal ficar vivo. Morei em Salvador até 1988. Sou filho de uma mãe doméstica de Salvador, que antes morava no Recôncavo Baiano. O pai dela, fruto dos anos 40, 50, não tinha letramento, e quando a mãe dela morreu, ele passou as filhas para serem vendidas e elas foram compradas por algumas famílias. A minha mãe sofreu abusos sexuais, digo que é a única pessoa que vivenciou a escravidão e o whatsapp em uma mesma existência. Ela é ativista social. O nome dela é  Ivanete Pereira. Minha mãe comanda projetos, tem 60 anos, escreve rap e não é essa coisa caricata. Se eu te contar a vida dela, você vai querer entrevistar ela, não eu.

Venho desse contexto, meu pai era chefe de tráfico em Salvador, acabou assassinado, e ao mesmo tempo, eu sou herdeiro de dois eixos muito simbólicos no Brasil: de um lado era Serra da Barriga, um levantamento mostra que ali estão descendentes diretos do Quilombo de Palmares. Para a nossa família,  foi uma alegria muito grande saber isso, e a gente aí entende um pouco dessa inquietude, de tentar contaminar a agenda do status quo. De outro lado, a família do meu pai é da linhagem de Mãe Adagilsa.

BANDIDO, NÃO

“Minha mãe sempre teve como objetivo que os filhos não virassem bandidos, porque a tendência seria essa. Em 88, ela fez uma fuga, fugiu do meu pai. Como ele comandava todo o território, tomou a decisão de distribuir as nossas roupas nas casas das vizinhas, e estamos falando de 88, na periferia de Salvador, quando essa onda feminista não tinha se popularizado, e as vizinhas saíram então de casa com sacolinhas de supermercado, cada uma com um pouco das nossas roupas, e umas 40, 50 mulheres com sacolinhas foram encontrar minha mãe na rodoviária, sem vazar informação.

Viemos para Laranjal paulista, moramos lá cinco anos e meu pai conseguiu localizar a gente, conseguiu rastrear. Então minha mãe se muda para a zona leste de São Paulo, e aí eu já tenho 13 anos. Isso foi ali por 92, 93. Já sou um menino grande, vou vivendo as experiencias de uma periferia no seu habitat, que foge de grupos de extermínio, numa época em que havia Cabo Bruno e outros exterminadores na periferia de São Paulo. Foi o período que eu vi alguém morrer pela primeira vez na minha vida.

Não cheguei a ser bandido, mas tive muitos amigos, vi meu amigo Catatau tomar um tiro e morrer na minha frente, a mãe debruçada sobre o corpo dele sem vida, aquilo, no Jardim das Oliveiras. Ali tomei a decisão de nunca ser bandido, não queria que o projeto da minha mãe falisse. Falamos de uma mulher de 28 anos que fugiu com quatro filhos. A partir dessa consciência do compromisso, eu queria ver o que fazer da vida.”

HIP HOP

“Tentei ser servente de pedreiro, mas tem que ter a munheca solta pra jogar massa na parede, e eu não tinha. O máximo que eu consegui foi fazer um curso de eletricista residencial, mas meu mérito  sempre foi de conciliação, de contar histórias. Falar sempre foi um problema na minha vida. Na escola, falava demais e era expulso, perdi emprego porque falava demais.

Quando eu conheço a cultura hip hop, Mano Brown, Milton Santos, Abdias do Nascimento, aí começo a  dar um destino pra esse verbo e gerenciar a consciência crítica do processo. Essas coisas vão acontecendo, mas dentro de um âmbito indefinido. Eu não cantava, não dançava, não era bonito (para os padrões da época), ninha mãe começa a ver os bandidos tretarem comigo, eu era um cara muito comunicativo.

Minha mãe me mandou então para o Rio Grande do Sul, em 97, para trabalhar com um tio que trabalhava numa gráfica. Ali vou trabalhar recolhendo papel e fazendo faxina, uma gráfica que acabou falindo depois de um ano, um ano e meio. Eu fico com vergonha de voltar pra casa e dizer que fracassei. Fiquei lá, tentando tudo quanto era serviço.”

DA FAXINA À EDIÇÃO

“Fico lá 98, 99, e nessa brincadeira de ficar por lá, trabalhei de zelador, trabalhei vendendo válvula de gás na casa das pessoas, e chegou um momento que não tinha mais trabalho, dormia debaixo do viaduto. Não virei morador de rua, mas estava em condição de rua. Nesse período, uma equipe da TVE estava fazendo um teste e vieram me entrevistar, ali no viaduto. Comecei a falar e aí foi aquilo. Minha mãe é testemunha de Jeová, tem letramento de rap e da Bíblia. O cara me chamou pra fazer uma palestra, me chamou para curso de teatro. Falei: ‘Tenho 18 anos, quero ser alguém na vida’. E me chamaram pra trabalhar como auxiliar de serviços gerais.

O que é auxiliar de serviços gerais? Eu nem sei definir. Limpava estúdio, só que comecei a limpar também sala de produção, onde as pessoas pensavam a televisão, e de repente o faxineiro estava atendendo telefone: ‘TVE, boa tarde’. Fui, faxina, levava roteiro, comecei a aprender a trocar nome de alguém no roteiro, quando precisava. Dali a pouco, se não tinha  dinheiro, dormia no caminhão, e os editores da madrugada começaram a me ensinar a fazer nota coberta [texto com imagem], a lidar com fita VHS, Umatic, comecei a pensar comunicação lá da base. De dia varria estúdio, de noite aprendia a fazer edição. Nessa brincadeira, fiz o curso de radialista da Fundação Padre Landell de Moura. E quando deu um rolo lá no Rio Grande do Sul que não podia mais haver apresentador sem registro e nenhum dos apresentadores de um programa tinha registro, falaram: ‘vamos ter que acabar com o programa’. Eu disse: ‘eu tenho registro de radialista’. Os caras: ‘o faxineiro tem registro?'”

NA FRENTE DAS CÂMERAS

Começo a apresentar o programa nessa condição, fazendo um quadro de hip hop. No meio dessa brincadeira, foram dois anos, deu super certo, aí ia começar o Fórum Social de Porto Alegre, e no meio de um evento conheci a Alice Urbim, que era da RBS. Ela me deu um cartão, e eu comecei a encher o saco dela que a Globo não sabia falar com a periferia.

Conclusão: de tanto eu perturbar, ela me chamou para fazer a cobertura do Fórum Mundial, em abril me contratou, e em novembro, a gente inaugurou uma lógica de comunicação, que era o cara da periferia narrando a perspectiva dele de mundo, não a perspectiva de periferia. Não é mais o cara da periferia falando da periferia, só. Dali tocamos um projeto do Erick Bretas, depois fiz algumas coisas com Marcel Souto Maior para o Caco Barcellos no Profissão Repórter, e a gente leva adiante no Rio Grande do Sul um projeto super sólido que era um meio termo entre comunicação comunitária e comunicação de massa. Chega uma hora que isso foi para a rede nacional, para o Rep [plataforma social da Globo em redes sociais], para a Fátima [Bernardes], JN, e aquilo começa a ganhar um contorno, virou uma tendência, de maneira muito instintiva, rolou um protagonismo bacana.”

CONECTAR OS BRASIS

“É óbvio que eu tenho responsabilidade, estou indo [para o É de Casa] como apresentador temporário, para fazer cinco programas, é uma perspectiva. O programa tem a sua linguagem, tem a sua cultura, óbvio que dentro do programa cada um pode ser mais autoral, difundir as suas ideias, trazer a sua perspectiva, o seu olhar, mas o programa tem uma identidade e tenho que ter um cuidado muito grande com ela. Eu não quero pertencer a uma narrativa lacradora, poucas vezes eu vi as pessoas se abrirem ao ouvirem verdades. Meninos do tráfico, quando você fala a realidade nua e crua, eles se fecham. Dentro do É de Casa, nesses 24 meses, estamos buscando encontrar o tom conciliador de mudança, não é a verdade da periferia que vai mudar o mundo, não é a verdade do asfalto que vai mudar o mundo porque pode ter boas intenções, mas não tem vivência. Acho que a nossa função, na condição de apresentação ou repórter, é fazer uma interlocução saudável entre esses Brasis que não se conhecem e sequer se conectam. Não vou acirrar as diferenças entre dois mundos. Eu prefiro falar das semelhanças.”

LUGAR DE FALA

“Acima de tudo estamos tentando dizer para o público que existe um caminho de diálogo possível. A cultura do cancelamento é um absurdo, o conceito do lugar de fala, tão importante hoje, acabou virando uma algema, e aí a verdade acaba não sendo dita, a gente está vivendo uns dilemas narrativos que são muito preocupantes. Tem que investigar como veículo de massa, não na bolha, eu não sou um filho da bolha, eu quero lubrificar essas relações na massa, não na bolha.

O meu objetivo na apresentação do É de Casa não é vender verdade só a partir do meu discurso, mas da minha estética, da minha biografia.”

FILHOS

“São quatro biológicos e dois afetivos, de 21 anos, 19, 16, 4, 2 e 1 ano.  No conceito africano, filho representa bênção, significa que eu espalho a minha essência por meio deles, e os meus filhos só me trouxeram prosperidade.”

CONFIANÇA

“Eu tô muito feliz, não tô puxando o saco da empresa. Poucas pessoas têm uma visão tão critica da Globo como eu, e eu tô muito feliz com a generosidade e a humildade com que a empresa está se propondo a fazer a diferença.

Amauri Soares [diretor da Globo] me liga pra me pedir que eu fale sobre o Chadwick Boseman na abertura do Tela Quente com ‘Pantera Negra’. Ele não me deu um texto, e eu não tinha nada escrito para ler. Ele me diz: ‘Por favor, só cite o filme, o ator e a que horas começa, o resto é com você’. Foi uma responsabilidade grande, essa atitude do Amauri Soares, de ter honrado uma confiança. Isso demonstra pré-disposição em ouvir e não intervir.

Quando eu ouço esse tipo de fala na posição que ele está, isso me deixa tão motivado! Não é o Manoel, não é o Amauri, existe uma estrutura entendendo que as coisas têm que ser de outra forma, e sem ferir ninguém, isso chega por negros, por brancos, a gente está encontrando uma voz de conciliação, e essa voz encontrar um corpo negro neste momento é muito significativo.

De modo geral, há um reflexo da resistência, um avanço, mas não pode parecer que estamos parabenizando a casa grande por ajudar a senzala. Está havendo agora um processo de descolonização da mente branca, do racismo. O racismo machucou muito o branco também, que precisou mentir, e quando começa esse processo de desconstrução, a gente vai pra um lugar melhor.”

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Cristina Padiglione

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