Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Paulo José encarava o Parkinson como ‘coadjuvante de peso, mas nunca protagonista’

Paulo José em sua atuação na novela "Em Família". Foto: Alex Carvalho/Divulgação

Morreu Paulo José, 84 anos, ator, diretor, narrador, figura que habita o melhor da memória afetiva de muitos profissionais do meio artístico e de muita gente que se ocupou de engrossar aplausos a ele na plateia.

Convivia com o Parkinson havia 28 anos. Em 2014, quando estive em sua casa na Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro, para falarmos de seu então futuro trabalho na novela “Em Família”, de Manoel Carlos, em que viveu um personagem que também tinha Parkinson, ele me brindou com um texto seu sobre a maneira como convivia com a doença, de onde extraí a frase acima e cuja íntegra publico abaixo.

 

“Já lá se foram vinte anos! Era no final de 1993 e eu jamais poderia acreditar que chegaria ao século XXI carregando esse Parkinson comigo. O Mal de Parkinson não foi inventado pelo Dr. Parkinson, a doença já existia, foi descrita pela primeira vez por James Parkinson em 1817, e se caracteriza pela falta de dopamina, um neurotransmissor que é produzido na substância nigra do cérebro e cuja ausência é responsável por discinesias, movimentos involuntários dos braços, pernas, cabeça, tremores, perda de expressão do rosto e da voz, sensação de carregar mais de vinte quilos em cada pé, mão trêmula de esmoler, cara de bobo ou de jogador de pôquer, redução da potência vocal, falta de equilíbrio, freeze (congelamento), visão dupla, enfim, uma doença degenerativa, incurável que pode ser de origem genética ou ecológica, não se sabe bem de onde vem, mas sabe-se muito bem para onde vai, um prato cheio de sintomas que só tendem a piorar, principalmente se você fuma, bebe e tem uma vida sem regras nem rotina.

Falta de rotina que é da natureza do ofício mesmo de quem a vida toda foi ator de teatro, atividade noturna que anda na contramão do horário dos comuns mortais: o jantar só depois do espetáculo, vai-se dormir lá pelas duas ou três da manhã, e quando as pessoas descansam, nos finais de semana, é quando mais se trabalha. E é o mesmo ator quem faz cinema, atividade que começa às quatro, cinco da manhã, pois é preciso aproveitar a luz do sol, filme rodando das sete da manhã às seis da tarde, sem falar das noturnas, que acabam às seis da manhã, e para garantir uma grana, estamos pagando nosso apê em prestações, precisamos topar aquela participação na TV, externa de manhã, estúdio à tarde, externa noturna. E nosso clínico vem falar em hábitos morigerados, vida saudável – vida saudável a que horas, meu deus do céu?!…

Pois bem, em 1993 estava eu fazendo um ‘Você Decide Especial’, programação que era de minha inteira responsabilidade , e  quis encerrar o ano com um super-programa, com orquestra sinfônica e tudo, com três finais para o público decidir – normalmente eram dois finais. Superestimei minha capacidade como diretor, era um programa cheio de música clássica, Brahms, Beethoven, Mozart, Mahler, executado pela Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal, tudo era grandioso, muitas câmeras, vários vetês, uma edição complicadíssima que me consumiu três dias e três noites, sem sair da ilha de edição, a não se para ir ao fumódromo (pequena área onde se podia fumar e comer algum sanduíche e muito café para espantar o sono). Uma correria incrível contra o tempo.

O especial iria ao ar às 21 horas. Finalizei a edição e entreguei a versão final às 20 horas, uma hora antes do início do programa. Foi o tempo exato de darmos uma passada mecânica no texto e pronto!… ‘Você Decide’ do final de ano estava no ar. Entre mortos e feridos salvaram-se todos. Menos o comandante, que afundou com o navio, proferindo suas últimas palavras: ‘My Kigndom for a horse. White horse… on the rocks…’ Foi uma pedrada no meio da testa. Ao primeiro gole, fiquei tonto e desmaiei. Me recuperei, fui para casa e, no dia seguinte, dormi 22 horas seguidas.

Ao acordar, fui tomar o café da manhã, lá pelas oito da noite, e então percebi que meu corpo não obedecia às ordens do meu cérebro. Minhas mãos não faziam o que eu queria fazer, coisas simples como passar manteiga no pão, escovar os dentes, responder rapidamente ‘aonde vai a câmera’…

Fui para um neurologista. Fiz vários exames, de sangue, de urina, fezes, radiografia, eletroencefalograma, ressonância magnética, tomografia… e nada. Nenhum tumor no cérebro, nenhuma mancha, nada. O Mal de Parkinson não aparece visualmente nos exames. É um diagnóstico por eliminação. Se não tem coágulo, não tem tumor, não tem nada, mas tem enorme dificuldade para meter a cinco na caçapa do meio então… tem Parkinson. Foi o que eu deduzi, e o médico também. Concluído o diagnóstico clínico, o exame de fundo de olho, aquele martelinho de borracha no joelho e outros rituais obrigatórios, recebi uma receita para eu tomar. Dois medicamentos: Prolopa e Mantidan. Li em voz alta

E perguntei: ‘até quando?’. Ele fez uma pausa expressiva e disse com voz tumular: ‘para toda a vida!’ E depois de um silêncio, arrematou, como se batesse o último prego em meu caixão: ‘Você tem uma doença degenerativa (pausa), progressiva (pausa) e irreversível (ponto final)’.

Recebi aquele diagnóstico como um ator que busca recobrar as palavras do texto que lhe fugira. Não havia o que responder. ‘Lasciate ogni speranza voi che entrate’, frase de Dante escrita na porta do Inferno, foi só o que me ocorreu.

Então, olhei para o médico e vi que ele não era mais jovem. Me dei conta de que ele também estava diante de uma enfermidade, degenerativa, progressiva e irreversível: a velhice e a morte. ‘Todos temos essa doença, a decadência que começa antes dos trinta’, consegui dizer, baixinho. Fiz essa comparação e saí de lá reconfortado por ter devolvido para o médico o que ele havia me dado. Ele ficou lá, sentado, com aquele sorriso parvo de inútil superioridade.

                                                               As pessoas me perguntam como me senti ao saber da doença. Não foi um choque. Sabia que ninguém morre de Parkinson, se morre com Parkinson. Além do mais, não tinha noção da gravidade. Costumava brincar de que era o meu Parkinson de diversões. Recebi mensagens de pessoas que tinham a doença. Percebi que os magoava fazendo aquela brincadeira. Claro que é algo sério. Mas não resisto ao meu bom/mau humor e torno a repetir a piada até hoje, cada vez menos engraçada. Meu Parkinson de diversões…

Mesmo com a medicação, fui avançando em direção ao progressivo e irreversível mal. Com o tempo, os sintomas tornaram-se mais fortes. O enrijecimento geral, a perda de movimento. As pessoas mudaram comigo. Queriam me proteger. Ficaram com pena mesmo. Isso nunca me incomodou. Pelo contrário. Sou um sobrevivente. Acho que tenho muita sorte por ter tanta gente que gosta de mim, em casa, no trabalho, na família, entre os amigos. Recebo muitos cuidados. Tenho de ser grato por isso. E sou.

O Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, na época vice-presidente da Globo), o big boss, não podia ver ninguém doente. Então me chamou na sua sala, que tinha uma verdadeira farmácia em sua mesa de trabalho, uma biblioteca da qual tirou um livro grosso, um Who is Who da medicina com todas as doenças do mundo, eu acho. Pegou o livrão e ficou procurando no índice ‘Par, par, Parkinson’, por fim encontrou o que queria, os lugares de tratamento que eram referência para essa doença. ‘O melhor lugar para tratar do seu Parkinson é o Instituto Presbiteriano, em Nova York’. É para lá que você vai, se tratar com o doutor Stnanley Fhan. A Globo de lá vai arrumar tudo. Vai ter uma pessoa sempre com você para qualquer coisa que for preciso’. Pegou o telefone e pediu que a secretária ligasse para New York. O Boni mandou, eu obedeci. Nunca foi tão rápido tomar uma decisão. Era o Método Boni em ação. Fui muito bem tratado. Passei uma semana no Instituto Presbiteriano fazendo toda sorte de exames e acompanhando os treinamentos dos terapeutas. Voltei mais animado e disposto a me tratar com quem fosse especialista em Parkinson. Então conheci, indicado pelo Dr. Fhan, o Dr. James Pitágoras da Silva, no Rio de Janeiro.

Um belo nome, James de Jesse James, Pitágoras do teorema e Silva para ganhar raízes brasileiras. Ele monitorava a medicação de acordo com o meu estado geral. Se você passa a tomar mais de um medicamento forte, tem de tomar outro para minimizar os efeitos nocivos do primeiro. Todo remédio tem efeitos colaterais. Tem um ponto que você tem a síndrome do uso prolongado do medicamento. Quando isso ocorre, começa a te dar justamente aquilo que ele pretendia atacar. Ficava com os sintomas do Parkinson mais aguçados. Cada organismo reage de uma forma a diferentes dosagens. É preciso encontrar a dosagem certa. Ainda tenho problemas de equilíbrio, às vezes. A medicação mexeu muito com a minha libido. Ora ficava exacerbada, ora sumia. Tudo isso você vai ajustando com o carro andando, enquanto toca a vida. ‘É com o andar da carroça que se ajeitam as melancias.’

Se já passei vexame por causa do Parkinson? Diversos, mas um em especial me marcou muito.

Fui convidado para participar do programa de entrevistas Roda Viva. Ficaria exposto em cadeia nacional. Fiquei nervoso. Então, fiz um coquetel de levodopo (a principal medicação para tratamento do Parkinson) junto com um relaxante. O tiro saiu pela culatra. Fiquei com os movimentos mais acentuados. Perdi o controle da mão direita. Chico Caruso desenhava o entrevistado. Ele me fez com seis mãos, parecia um polvo com cabeça de homem, de tanto que mexia os braços. Consegui dar a entrevista. As pessoas não se incomodaram tanto quanto eu. Quando sabem que você tem Parkinson já esperam um comportamento que não seja tão normal. Ainda assim, fiquei muito chateado. Isso faz dez anos. Nunca mais dei entrevista para a TV sem pensar nesse mico.

Quando a medicação teve seu efeito reduzido, James Pitágoras me recomendou um novo tratamento. Novo mesmo, coisa de dez anos para cá é que vem sendo utilizado. A novidade trazia os riscos de toda a cirurgia com pequeno histórico. Pitágoras me mandou para um neurocirurgião, um mestre em abrir cabeças, o Dr. Paulo Niemeyer Filho, que abriu a minha (cabeça) e colocou lá dentro uma espécie de marca passo, conhecido como DBS. Deep Braian Stimulation (estimulação profunda do cérebro, em português). A Globo cobriu a maior parte dos tratamentos mais caros, Paulo Niemeyer e sua equipe não me cobraram nada.

Quando tenho que dar uma entrevista, sempre fico muito ansioso. O cigarro me acalma. Como diria o Quintana, ‘fumar é uma maneira disfarçada de suspirar’.

Há 15 anos recebi outro diagnóstico, de enfisema pulmonar. Não é câncer, mas mata, o pulmão enrijece, acaba-se sem ar. Na depressão, é difícil não fumar. Atualmente, fumo pouco, cinco cigarros por dia, no máximo. Às vezes, nenhum. Quando tenho alguma crise respiratória, largo o cigarro e melhoro.

Tive muitos momentos de depressão. Houve um tempo que tinha medo de dormir e não acordar mais. Às vezes, tenho medo de morrer. Não estou num daqueles momentos de depressão profunda. Mas, tampouco este é um período fácil. Quando acordo, tenho de fazer uma escolha. Decido sair da cama. Hoje será um dia melhor. Ao me deitar, não penso se o dia foi mesmo melhor ou não. Olho para a frente e penso: ‘amanhã será um outro dia’. Assim, sigo tralhando VIVENDO DIA POR DIA.

Sempre trabalhei muito. Não me lembro de como é não ser ator. Comecei teatro amador na adolescência. Dos cinco irmãos, fui o único que se tornou vagabundo profissional. Minha mãe era uma espanhola, fluente em francês e professora de língua portuguesa. Era a pessoa que mais sabia poesia de cor. Meu pai, um engenheiro, filho de fazendeiro no sul e que se formou no Rio de Janeiro. Já eu fui criado entre gauchadas e poesia, entre Bagé e Lavras do Sul, no Rio Grande do Sul.

Quando decidi largar a faculdade de arquitetura, no terceiro ano, foi um alvoroço em casa. Há anos, eu fazia teatro amador. Percebi que tinha de tomar uma decisão: ou largava o teatro ou ficava nessa mesmice amadora, meio artista, meio engenheiro. O coração falou mais alto. Contei para a minha mãe que decidira ser ator. Ela disse: ‘Tu tens certeza, Paulo?’ Foi falar com meu pai. Depois de um tempo, meu pai me chamou. ‘Tu queres largar a faculdade?’ ‘Sim, quero’, respondi. ‘Tu querer ser ator?’ ‘Sim, quero’, continuei, com firmeza apreensiva. ‘Já estás decidido, não adianta argumentar?’, disse ele, bem sério. Diante da minha confirmação, sentenciou: ‘Então, vai embora daqui’, disse ele. ‘Vai morar em outro lugar’,  falou baixo, mas com firmeza, em tom de quem não aceita argumentação. Senti que não tinha mais lugar na casa paterna. Mas a grande surpresa, que me enche os olhos até hoje, cada vez que reconto essa história, estava reservada para o final. Já saindo da sala, parou e concluiu, em tom quase secreto: ‘Tu vais morar no Rio de Janeiro ou em São Paulo’, e depois de uma breve pausa, arrematou: ‘E eu te ajudo’.

Como se pode ver, sempre tive muita sorte.

Me casei quatro vezes. Tenho quatro filhos e dois netos. Meus primeiros três casamentos foram com atrizes: Dina Sfat, Carla Camuratti e Zezé Polessa. Estou há 15 anos casado com a Kika Lopes (figurinista e cineasta). A Dina Sfat é mãe das minhas três filhas: a Bel, a Ana e a Clara Kutner. Fiquei com ela por 14 anos. Dina era judia. Ela não frequentava as tradições, mas as tradições sempre a frequentaram. Então, também fui judeu por 14 anos. Meu quarto filho, o Paulo Henrique, é filho de Bethy Caruso, a qual, como o filho, mora em São Paulo.

Acho que sempre estivem com alguém. Sou passional, mas gosto de fingir que não sou. Sinto ciúmes, mas finjo que não sinto. Se me perguntarem, nego tudo.

Minha relação com a profissão que escolhi também é assim. Estou sempre envolvido. Nunca parei de trabalhar, de fazer três coisas ao mesmo tempo. Nos últimos 20 anos, dirigi 10 peças, participei de 19 filmes e 18 programas de TV, entre séries e novelas. Dirigi mais de 200 comerciais. Em todos esses trabalhos, o Parkinson estava lá. Ele tem sido meu companheiro de palco, de estúdio, de vida. Quando subo no palco ou apareço em frente às câmeras para atuar, fico extremamente calmo. Sei as falas, o que vai acontecer e tenho serenidade para encontrar soluções para quando fico com a mão boba. Todos os dias faço duas sessões de fisioterapia, aulas de voz, toco piano para exercitar os dedos, nado, tomo remédios, muitos, cinco vezes ao dia. Isso tudo faz parte da minha luta diária para manter o Parkinson como um coadjuvante, um coadjuvante de peso, mas nunca um protagonista. Além do controle dos movimentos, minha luta agora é para preservar a voz que já me rendeu um bocado de grana, mas que está um lixinho.

No ano que vem, estarei na próxima novela de Manoel Carlos. É um trabalho que vai durar de fevereiro a setembro. Ainda este ano, tenho alguns projetos para finalizar. Estou reescrevendo o curso de direção e atuação que criei na Globo, em 1998 e na Escuela Internacional de Cine y Televisión, de Cuba. Sigo daqui a pouco para o Rio Grande do Sul com a peça que dirigi, ‘Murro em Ponta de Faca’. E estou trabalhando na seleção de narrações para um audiobook de poesias. Para os meus parâmetros, estou trabalhando pouco. Mas esses projetos são suficientes para me manterem ocupado e não pensar na Marvada.

O mais importante é que nunca deixei de ser bobo. Para citar a nossa escritora (Clarice Lispector), ‘ser bobo é ter boa fé, não desconfiar e, portanto, estar tranquilo. Enquanto o esperto não dorme à noite. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo nem sabe que venceu. É quase impossível resistir ao excesso de amor que o bobo provoca…. O bobo é capaz de excesso de amor e só o amor faz o bobo.'”

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Cristina Padiglione

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