Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘Nos Tempos do Imperador’ mostrou que é urgente recontar a história da escravidão

Michel Gomes e Gabriela Medvedovski em 'Nos Tempos do Imperador' / Divulgação

De Thereza Falcão e Alessandro Marson, “Nos Tempos do Imperador” termina nesta sexta-feira (4), deixando um relevante legado. Como disse Cinnara Leal, intérprete de Justina, em entrevista a Zeca Camargo no UOL, a novela passou longe de exibir o que “precisamos ouvir sobre o povo preto”. A duras penas, houve avanço na tentativa de se falar sobre o período da escravidão no Brasil a partir da senzala, e não da casa grande. É por isso que embora a novela estivesse bastante adiantada em suas gravações, a direção da Globo se viu forçada a regravar várias sequências, atendendo a uma pressão da audiência por meio das redes sociais.

É hora de dizer: que bom que já não se faz mais novela sobre escravidão como antigamente. Vamos lembrar sempre que nossa novela mais famosa sobre o tema tinha uma branca como protagonista. Não vai aí nenhum demérito a Lucélia Santos ou ao romance de Bernardo Guimarães, muito pelo contrário, mas a certeza de que nem em história sobre escravidão os negros tinham lugar de destaque.

“Nos Tempos do Imperador” deixa nos registros uma percepção parecida com a de “Segundo Sol”, novela de João Emanuel Carneiro de 2017, que pouco antes da estreia virou alvo de um debate até então inédito: por que uma história contada na Bahia, estado com maioria negra, era dominada pela branquitude, inclusive de seus protagonistas?

Várias já foram as novelas ambientadas na Bahia, sem que ninguém se desse conta de tal discrepância, assim como várias tramas já retrataram o período da escravidão no Brasil, sem que ninguém questionasse o fato de a história ser sempre contada pelo ponto de vista dos colonizadores e seus herdeiros.

“Foi tudo um processo”, explicou Cinnara a Zeca Camargo. “A gente estreou com uma frente muito grande de capítulos já gravados, a novela não estava fechada, mas já estava gravada do meio para o fim. Houve, sim, uma interferencia do público, e a partir disso houve uma abertura dos autores e da direção. Foi uma luta diária, particular e coletiva, até todo mundo entender que, como diz [a escritora nigeriana] Chimamanda, é muito perigoso ver só um ponto de vista da história. Trazer isso era de muita urgência.”

Segundo a atriz, o “espaço” obtido para contemplar essa outra narrativa na novela “foi totalmente conquistado, não foi cedido”.

A percepção de que seria preciso regravar sequências inteiras veio ainda no início da exibição da novela, quando foi ao ar uma cena de suposto racismo reverso: Samuel (Michel Gomes) diz a Pilar (Gabriela Medvedovski) que ela talvez não possa ir morar com ele em Pequena África pelo fato de ela ser branca e ser vítima de preconceito. A cena causou gritaria nas redes sociais e a autora se desculpou publicamente pelo que chamou de “erro grosseiro”.

Antes disso, o casal circulava livremente pelas ruas de um Rio de Janeiro de 1856, sem que qualquer questão de preconceito racial fosse discutida entre eles e sem que ninguém reparasse na raridade daquela combinação, ao menos na esfera social, ainda mais sendo ela a branca.

A partir daquele contexto, os autores e o diretor Vinicius Coimbra foram forçados a rever outros trechos. Soubemos então que o desenvolvimento do roteiro, como era comum até bem pouco tempo atrás, não trazia nenhum negro na equipe em seus primeiros capítulos. Especialista em história da escravidão no Brasil, Nei Lopes só entrou para o time de Thereza e Marson mais tarde. Após as queixas do público, a Globo trouxe ainda para a equipe de criadores a pesquisadora da USP Rosane Borges, o que resultou na reavaliação de vários capítulos. Até trechos envolvendo a princesa Isabel (Giulia Gayoso) foram refeitos.

Mariana Ximenes, Selton Mello e Letícia Sabatella em ‘Nos Tempos do Imperador’ / Divulgação

A presença de negros na criação das obras audiovisuais é fator primordial para corrigir cacoetes e erros que se repetem há anos. Por mais que um branco conheça a origem dos negros no Brasil e sua história, ele jamais terá a vivência de ações expressas na segregação do dia a dia, até hoje.

Tanto em “Segundo Sol” como em “Nos Tempos do Imperador”, os movimentos de contestação nascidos fora do set ganharam apoio da maioria dos atores brancos dos respectivos elencos, com repercussão e endosso das redes sociais. Não é à toa que a percepção sobre a urgência de um olhar pluralista e diversividado ganhe força nesse mundo em que a democratização da internet oferece voz a uma multidão que nunca foi ouvida.

Para coroar essa performance da novela na esfera pública, a trama termina com questões pendentes nos bastidores, como informou a coluna de Mônica Bergamo nesta Folha, sobre acusações de racismo cometidas nos bastidores da produção. Atores negros teriam se sentido segregados pelo tratamento que lhes foi conferido no ambiente de trabalho, segundo queixa recebida pelo departamento de compliance da empresa. A emissora não comentou o caso.

Uma cena belíssima em “Amor de Mãe”, novela de Manuela Dias, resume bem do que aqui falamos. Camila, personagem de Jéssica Ellen, dá uma aula aos seus alunos e outra para todos nós, telespectadores, ao chamar a atenção para o fato de a história ser normalmente contada por quem bate, nunca por quem apanha.

“A gente não tem historicamente registros das pessoas escravizadas, mas tem muita história pra ser contada de um povo que está todo representado na Justina”, diz Cinnara sobre sua personagem. “A gente resiste pra existir, eu levei para a Justina a descolnização desse olhar.”

Confira a entrevista completa no vídeo abaixo.

 

 

 

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