Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘Segunda Chamada’ expõe histórias de superação por meio da educação

Débora Bloch é professora na série 'Segunda Chamada' / Divulgação

“Aqui é que os livros chocam as suas letrinhas.”

Dita por José Dumont, um dos alunos de “Segunda Chamada”, esta frase, pura poesia, está no no episódio de estreia da série que estreia na Globo nesta terça-feira (8). Em onze capítulos, o título retrata a rotina de uma escola de adultos da periferia de São Paulo, todos moídos por uma tripla jornada que só os permite estudar no fim do dia.

São pessoas que não tiveram a oportunidade de estudar no tempo em que deveriam ter estado na escola, por várias razões, mas, essencialmente, por questões financeiras. Isso, por si só, abre um mar de possibilidades de histórias de superação, incluindo os professores, cuja rotina não se distancia da realidade daqueles alunos.

Em um universo onde os freak, reality e game shows de toda espécie prometem um mundo de sonhos e ilusões, incluindo aí o próprio Big Brother Brasil, da mesma emissora, é louvável abrir espaço para um enredo que coloca a educação como tábua de salvação e possibilidade maior de mudar a vida de quem vive tão mal.

Assisti ao primeiro episódio na sede da produtora O2 Filmes, parceira de produção da Globo, e encontrei ali uma estética árida no melhor sentido da palavra. Isso porque tudo preza pelo realismo, incluindo o rap na trilha sonora, sem os efeitos glamourosos que a televisão, e a Globo em especial, costuma aplicar na pós-produção de suas obras, tornando o céu mais azul e o vermelho das flores mais vivo. O ganho, no caso de “Segunda Chamada”, título de estreia de Joana Jabace na direção artística, é justamente a reprodução mais fiel do cenário de verdade sobre as histórias ali contadas.

Para ela, o grande aditivo da série é o elenco, escolhido sob muito critério, e capaz de apresentar novos rostos em meio a algumas grifes da casa, com Débora Bloch encabeçando a lista. Ela é uma das professoras, assim como Thalita Carauta, Hermila Guedes e Silvio Guindame. Paulo Gorgulho é o diretor da escola, reproduzida em locação que de fato abrigou escolas até poucos anos atrás e está abandonada há alguns anos, em São Paulo. Entre os alunos, estão José Dumont, Carol Duarte, Felipe Simas e Nanda Costa.

Talento promissor, William Costa, o Piolho da série “Pico da Neblina”, da HBO, produzida pela mesma O2 Filmes, também está em “Segunda Chamada” e merece um olhar atento. Já veterana, Teca Pereira é outro nome em comum com “Pico da Neblina”. Ela é a aluna idosa que resistirá à presença do travesti Natasha, vivida pela ativista social, cantora e atriz Linn da Quebrada.

A autora Carla Faour, a diretora artística Joana Jabace e a autora Julia Spadaccini. Foto: MaurícioFidalgo/TV Globo

Escrita por Carla Faour e Julia Spadaccini com Maíra Motta, Giovana Moraes e Victor Atherino, “Segunda Chamada” foi criada por Carla Faour, Julia Spadaccini e Jo Bilac. A direção é de Breno Moreira, João Gomez e Ricardo Spencer, regidos pela direção artística de Joana, com quem conversei sobre a série.

TelepadiComo nasceu a proposta de “Segunda Chamada”? É um tema árido e desafiador para cativar a audiência.
Joana Jabace – Fico apreensiva, porque que Brasil é esse de que a gente está falando? Mas os primeiros comentários são muito positivos. A série vem do desejo da Globo de fechar uma tríade de comprometimento social, com saúde (“Sob Pressão”), educação (“Segunda Chamada”) e segurança (“Carcereiros”). Não tinha nada sobre educação.

TPÉ um tema mais difícil em termos dramatúrgicos, não? Porque você não tem as possibilidades tão fortes de cenas de ação e urgência no limite de vida ou morte, como acontece em uma penitenciária ou em um pronto-socorro.
Joana – É mais difícil, mas, ao mesmo tempo, amplifica o leque nas relações professor-aluno nessa situação de professores que dão aula à noite. Esses alunos que estão ali porque querem estar ali – não tem ninguém falando ‘vai pra aula’, o cara tem certeza que vai mudar de vida porque realmente a vida dele vai melhorar. Isso coloca também os alunos em um lugar muito rico, de muitas possibilidades de drama. E os professores que dão aula nesse tipo de escola, eu visitei várias escolas, a realidade deles é muito colada na realidade dos alunos. Eles também trabalharam de dia em outros lugares. Então, eles também chegaram ali depois de uma jornada dupla, como os alunos. Todo mundo que está ali já travou uma batalha grande para chegar até lá. Isso é um caldeirão que rende muita história.

TPVocê chegou quando este texto já já estava pronto ou participou da criação do projeto?
Joana – Não, eu fui chamada para fazer o projeto, tinha sinopse, ainda, não tinha nenhum episódio escrito. E a Globo está começando a fazer uma nova dinâmica de aproximar o diretor antes de o texto estar pronto, para o diretor contribuir com os roteiristas.

TP – É, não tem mais aquele negócio de televisão ser a arte do autor, e o cinema, a arte do diretor, porque, afinal, estamos falando de audiovisual que possa caber em todas as telas…
Joana – Exatamente. Então, a gente trabalhou muito tempo juntas, a Júlia e a Carla, que são as autoras, eu ali com elas, dando minha opinião sobre o que poderia ser mais atrativo para a cinematografia, porque é uma série toda feita dentro da escola. Como trazer cinematografia para isso? É uma certa cilada para o diretor, por isso é que foi tão importante filmar em locação. Essa escola é um antigo colégio, que foi ocupado pelo Equipe e depois ficou abandonado.

TPQuantos episódios?
Joana – Onze. O décimo segundo iria ao ar no dia de Natal, então, o 11º é maior, é como se fosse um duplo, de 70 minutos. A temporada toda tem um arco dos cinco professores, ou o diretor e os quatro professores têm o arco mais longo, e cada episódio dá conta de dois ou três alunos. A Nanda Costa, por exemplo, quase uma coadjuvante no primeiro episódio, terá uma história dela no quinto episódio. As grandes histórias do primeiro são a Carol (Duarte) e a Linn, mas como cada episódio se passa numa noite, tem um prólogo, que são cenas de dia, que sempre antecedem a noite, e aí a história entra na escola e fica ali, terminando com um epílogo. O arco dos professores também nem é muito longo porque é uma noite para cada história, o que deixa a temperatura de cada episódio muito quente, quase um ’24 Horas’.

TP – Vocês tiveram alguma consultoria in loco, na hora de gravar, ou para escrever?
Joana – Não, a gente foi a várias EJAs (Escolas para Jovens e Adultos). A gente conversou muito com os professores, com os alunos, a mulher do Paulo Gorgulho dá aula numa EJA, então nosso feedback sempre foi ‘nossas histórias são muito de verdade’, a gente tinha esse feedback.
Fui à [favela da] Maré com a Débora, fomos à Rocinha… A série não seria em São Paulo, mas quando decidimos fazer tudo em locação, decidimos por São Paulo em vez de fazer em cidade cenográfica, o que não ia funcionar tão bem. E gravar em locação no Rio é mais complicado.

TP – Por quê? É mais difícil negociar de gravar nas comunidades, atualmente?
Joana – É. Em São Paulo, visitamos várias e são muito diferentes uma da outra. Fomos entendendo que o bom funcionamento dessas escolas depende muito dos professores, é quase uma solução artesanal. A gente chegava a algumas muito deterioradas, mas havia os livros, que as pessoas traziam, tinha quem chegava mais cedo pra arrumar tudo.

TP – E o processo da música, como foi?
Joana – Quando fui chamada para fazer o projeto, eu sempre achei que a melhor maneira para contar essa história era fazer um tom realista, sem estetizar, sem glamurizar, sem fazer com o olhar de quem está fora da situação, e eu tentei mergulhar nisso em todas as instâncias, nos atores, na escalação desses rostos, quem são essas pessoas que vão interpretar esses personagens, na direção de arte, na fotografia. E daí essa escolha da trilha sonora ser de periferia atual, não de vir uma trilha sonora de fora, música americana, não vejo isso aqui. Essa música de abertura é do Emicida, chamada ‘Amarelo’, que ele fez pro irmão dele, e que é um samplão do Belchior e a gente usa o Belchior no final. Tem a ver porque Belchior é uma coisa naïf.

TP – É seu primeiro projeto como diretora artística e ele sai bastante da casinha, não está enquadrado naquele velho padrão Globo de entregar algo mais estetizado para a plateia.
Joana – É um desafio, mas é uma série, o que é muito legal. O bom de trabalhar com projetos fechados é saber para onde vai aquilo, para o diretor é um conforto saber amarrar o conceito. Quando é aberto, o conceito inevitavelmente fica mais frouxo. Poder fazer tudo em locação é um ganho também.

TP – Há expectativa para uma segunda temporada, imagino.
Joana – Tem, tem. O primeiro retorno que a gente teve foi desse promo [minitrailer] (pubicadono Youtube), que foi muito positivo.

TP – E há ali, nesse contexto de uma produção que se esmera por evitar um verniz estético, a expectativa de que muita gente que não se vê representada na TV possa se encontrar na tela, não?
Joana – Sim, que se sinta mais representado. E de andar muito com esse universo das séries e poder usar a estrutura da Globo pra fazer uma série que possa se aprofundar no assunto, como ‘Sob Pressão’ faz tão bem. Há uma valorização de texto. E as histórias que aproximam dois universos. O Silvinho [Guindane] (um dos professores), dando aqui um spoiler, ele é adotado. E a mãe biológica dele vem daquela comunidade da escola. Então, na verdade, ele vai dar aula ali para tentar resgatar aquele passado, ele é um boyzinho.

A série fala mais das relações humanas, não é um institucional sobre educação. Educação é bem pano de fundo, as relações de aluno-professor, as situações são de superação, de como aquela escola transforma a vida do aluno através do afeto. Os professores são missionários.

O segundo episódio vai ao ar no Dia dos Professores, e a gente fez um episódio em homenagem ao Dia dos Professores, e colocamos vários depoimentos de professores no final, está muito emocionante.

 

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Cristina Padiglione

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