Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Novela das seis vai além da ilusão e do mero escapismo

Rafael Vitti e Larissa Manoela: química rara / Divulgação

À primeira vista, a nova novela das seis da Globo parece recorrer ao mero escapismo para ganhar um público massacrado pelo noticiário contemporâneo. Na vida real, uma pandemia segue sacrificando milhões de pessoas por quase todo o planeta, negacionistas duvidam da ciência, tem gente morrendo a pauladas por cobrar a sub-remuneração que lhe é devida, enquanto outros são mortos a tiros na porta de casa, confundidos com ladrão, e outros tantos são dizimados por balas mais achadas do que perdidas.

Não tá fácil pra ninguém. Convém um respiro para não surtar. Figurino, cenário e problemas alheios podem ser terapêuticos nesse contexto. Mas nem por isso a alienação absoluta é algo confortável.

Na ficção aqui mencionada, o título “Além da Ilusão” remete ao ilusionismo, ofício que motiva a vocação de seu protagonista, Davi, vivido por Rafael Vitti. Mas o nome se aplica perfeitamente ao enredo de Alessandra Poggi, já que a produção vai de fato além da falsa percepção de querer apenas afujentar o telespectador para um universo de sonhos, bem distante da árdua realidade de nossos dias.

Sob um verniz favorecido por toda uma alegoria de época, fator que inevitavelmente empresta uma moldura estética acolhedora aos olhos da audiência (o popular “bonito de ver”), o folhetim tem, na linha de frente, o  amor impossível, recurso infalível na condução de uma novela.

O conflito é lindamente sustentado por Vitti e Larissa Manoela, par aqui testado diante das lentes pela primeira vez, com êxito raro. Acabamos de conhecer Davi e Elisa, mas já temos a sensação de que nasceram um para o outro desde o primeiro capítulo.

Entre os meandros desse romance, no entanto, encontramos diálogos muito atuais que, quase de modo subliminar, cutuam o telespectador sobre questões como jornada de trabalho, trabalho infantil, educação e feminismo, sem deixar de lembrar que o voto feminino já foi motivo de celebração e não faz muito tempo.

“Eu não entendo essa assembleia constituinte, Raimundo. Onde já se viu? Querem nacionalizar os bancos e os direitos sociais, podem inflacionar o estado, vai ser um tiro no pé”, diz Matias, personagem de Antônio Calloni, que já comprou a ira da plateia por tentar proibir o namoro da filha com um “artista”, perfil que ele considera inferior ao da filha.

(Qualquer semelhança entre a visão do pai de Elisa com o modo como profissionais da cultura são tratados pela atual gestão federal no Brasil não é coincidência.)

“Querem também proibir o trabalho infantil, Matias, e estabelecer uma jornada diária de oito horas com descanso semanal!”, reage Raimundo (Marcos Breda).

“Cá entre nós, isso nem parece coisa do Getúlio”, continua o juiz Matias. O que ele pretende com esse absurdo? Criar uma geração de brasileiros preguiçosos, é isso?”

O texto aparece salpicado entre uma cena e outra do açucarado romance às escondidas dos protagonistas. Em outro momento, uma mãe viúva repreende o entusiasmo do filho para estudar. “Estudar pra quê?”, diz a imigrante italiana. “Você tem que lavorare”, informa a mulher, para a decepção do garoto.

A novela de D. Pedro 2º ficou para trás, mas Poggi não perde a chance de dar pistas sobre história do Brasil. Na outra ponta da trama, temos a decadência dos engenhos e a realidade de uma casa grande já sem senzala oficial, mas cercada da herança escravocrata, com os contrastes que isso representa no processo de imigração.

A mão da direção de Luiz Henrique Rios é precisa na condução do conjunto da obra, uma novela sem medo de ser novela, como ele apropriadamente definiu em entrevistas. E é evidente o serviço prestado na direção de atores.

Mesmo reforçando a sintonia entre Vitti e Larissa, é latente que ambos passaram por bom processo de preparação e orientação da direção. É verdade que ele tem uma organicidade que passa mais distante da performance dela, até pelo papel da mocinha rica, linda e educada sob as rédeas da formalidade exigida das mulheres “direitas”, inevitavelmente transformadas em bonequinhas, a ponto de algumas falas beirarem a dublagem, tamanho é o cuidado com a plasticidade.

A produção nos brinda ainda com a potência de Lima Duarte, sempre gigantesco, e a chance de vê-lo contracenar com a neta Paloma, dona de extraordinária luz própria. As cenas entre ela e Malu Galli são espetáculo à parte. E quando você, espectador, achou que já tinha visto tudo de bom, ainda vem Emiliano Queiroz e arrebata o afeto da plateia.

Paloma Duarte e Malu Galli: força / Reprodução

Vale a pena ver.

Cotação: Muito bom (deixo a possibilidade de excelente para os últimos capítulos, oxalá!)

 

 

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Cristina Padiglione

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