Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Novela feita para o streaming pode realimentar qualidade do gênero

A dupla Donatella/Faísca (Cláudia Raia) e Flora/Espoleta (Patrícia Pillar) em 'A Favorita', novela que desafiou as previsões do público. Foto: Rafael França/Divulgação

Nos tempos em que a Globo não disputava atenção com outras telas, novela boa unia audiência e ousadia. Quem bancaria algo como “O Casarão”, uma narrativa não linear de três tempos distintos na TV aberta de hoje? Ainda sabendo que algo contemporâneo similar como “This is Us” encontra grande público interessado no seu enredo atualmente, o bolo de audiência da Globo guarda históricos sem igual no mundo todo e a emissora tenta retardar ao máximo os efeitos da fragmentação de público promovida pela era do streaming.

Vamos lembrar que “A Favorita”, que ainda frequentava a casa dos 40 pontos de audiência e promovia um surpreendente nó na cabeça do público, foi considerada aquém do patamar habitual do Ibope para o ano de 2008, apesar da reconhecida inventividade do enredo de João Emanuel Carneiro.

É justamente ele quem teve uma sinopse transferida da TV aberta para o streaming em anúncio feito pela Globo na semana que passou. “Olho Por Olho”, até então prevista para a vaga de novela das nove, espaço onde ele emplacou o fenômeno “Avenida Brasil”, será realizada como produção original do Globoplay,  com apenas 85 capítulos. É muito possívelque ela chegue à TV aberta algum tempo depois de exibida, mas não mais para a vaga mais nobre da TV, como ainda é tratada a novela das nove da Globo.

Embora tenha tido todo aquele êxito com o duelo entre Carminha (Adriana Esteves) e Nina (Débora Falabella), Carneiro não voltou a repetir os números de “Avenida Brasil” –o que tampouco outro autor conseguiu fazer de 2012 para cá. Mas no contexto de um produto que perdeu metade de seu público em 20 anos, e isso vale para as novelas das seis, das sete e das nove da emissora, a habilidade em criar personagens dúbios em “A Regra do Jogo” e “Segundo Sol”, botando na tela gente como a gente, não encontrou tantos fãs à frente da TV como as histórias que prezam pelo maniqueísmo.

Esses são os casos de “O Outro Lado do Paraíso” e “A Dona do Pedaço”, de Walcyr Carrasco, e “A Força do Querer” ou “O Clone”, de Glória Perez, autora que terá sua nova novela antecipada na faixa nobre após Carneiro ser realocado no GloboPlay.

Todos os autores com quem converso defendem o maniqueísmo como algo ultrapassado: ninguém é só bom ou só mau o tempo todo, alegam. Mas na hora em que a cena está na tela, a canastrice, como dizia Nelson Rodrigues, chega mais rápido ao coração do público.

Surpreendida pelas notícias da vida real, boa parte da audiência não quer se decepcionar com a torcida pelos personagens que acompanham seu fim de noite após uma jornada exaustiva. É algo como uma plateia infantil –criança adora ver dez vezes o mesmo filme pelo conforto de adivinhar o que vai acontecer a cada cena.

Agora teremos “Pantanal”, feita de bons diálogos, estofo e personagens bem construídos, mas trata-se de nova versão de história já conhecida, repleta de lendas capazes de envolver o público –sem falar no cenário idílico, de encher os olhos do telespectador.

Muita gente prefere ver novela das nove como algo que nem demande muita reflexão, um entretenimento “fácil”, com diálogos mastigados e digeridos, na linha “quanto menos fizer pensar, melhor”.

O mesmo comportamento se dá no cinema americano, onde a busca por blockbusters motivou a migração de ótimos roteiristas e atores  para as séries de TV e streaming, reunindo profissionais frustrados com os algorítmos que ditam tendências de grandes bilheterias.

Sob esse aspecto, talvez Carneiro ganhe no streaming a chance de nos entregar mais de sua essência, sem ter de fazer as concessões que normalmente tem de fazer na TV aberta. De caráter menos passivo que a TV, o streaming nos leva a escolher determinada produção, o que por si só já é uma interação mais engajada. A plateia ali tampouco precisa ser tão gigantesca para cobrir os custos da produção, já que há pagamento de assinaturas a colaborar com o tamanho da conta.

Ao observar a frequência com que Carrasco vem ocupando a faixa nobre, sempre com êxito em audiência e diálogos mastigados que jogam para a torcida, é até animador saber que a Globo vai investir em outra frente de folhetins para o streaming. Fica aí a esperança de que tenhamos no GloboPlay as novelas que já não fazem mais para a TV aberta, com uma chance de agradar a uma plateia que gosta de pensar e sabe apreciar reflexões como as que nos traz Lícia Manzo, autora da atual “Um Lugar ao Sol”.

Ao mesmo tempo, convém que a Globo consiga equilibrar melhor os interesses da massa, que busca apenas escapismo, com os anseios do público interessado em absorver mais de um enredo de folhetim. Afinal, esse é o perfil de consumidor mais atento ao engajamento e portanto de maior valor para os anunciantes. Bem afinada com a linguagem popular, Glória Perez costuma unir essas duas pontas, às vezes com êxito, como aconteceu em “A Força do Querer”.

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  • LIGA
    Não é à toa que a conversa de quase três horas de Mano Brown no podcast Podpah bateu todos os recordes de audiência do programa em tempo real, superando os 345 mil espectadores simultâneos. O recorde anterior naquele cenário era de Lula, com quase 300 mil, no ano passado. O papo do Podpah com Mano é aula de grande utilidade sociale pública para quem mal conhece a realidade das periferias brasileiras e o que representa o rap nesse contexto. Para quem se vê naquele espelho, o programa trouxe oportunidade rara a tanta gente de se ver tão bem representado. Seis dias após a conversa, o link já acumulava quase 7.184000 visualizações no YouTube.
  • DESLIGA
    Na novela “Um Lugar ao Sol”, o tempo urge: casais brigam, reconciliam-se, trocam de pares e até morrem. Desde que perdeu o filho no parto, Bárbara (Alinne Moraes) já fez curso de redação, participou de concurso literário, tomou a obra da colega, fez nova lua-de-mel com o cônjuje, foi trabalhar na empresa do pai, foi atropelada, quase perdeu o marido e, passado o luto, adotou uma criança. Enquanto isso, Ilana (Mariana Lima) engravidou e pariu Maria, que já toma sol na praça. Só Franciso, filho de Ravi (Juan Paiva) e Joy (Lara Tremouroux), parido no mesmo dia do filho que Bárbara perdeu, não cresce e continua sendo transportado em um carrinho de bebê.
    Há uma boa razão para tanto: gravada em plena pandemia do coronavírus, a novela evitou crianças muito pequenas no set por questão de segurança aos menores. Mas a direção deveria ter planejado algo menos inverossímil para lidar com a ausência de um ator entre 1 e 2 anos, se é que essa criança já não deveria ter mais idade.

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Cristina Padiglione

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