Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘O Bem-Amado’ ressuscita no GloboPlay: que Odorico expurgue nossos males

Paulo Gracindo como Odorico Paraguaçu / Divulgação

De todos os lançamentos que a Globo fez até agora na aba de novelas de seu serviço de streaming, “O Bem-Amado”, novela de Dias Gomes que chega ao Globoplay nesta segunda-feira (15), é o mais relevante de todos.

Primeiro folhetim em cores da TV brasileira e primeiro a ser exportado, “O Bem-Amado” não se notabiliza apenas pelos feitos de pioneirismo, mas que sorte teve a Globo (e nós, público) de ter justamente o enredo de Odorico Paraguaçu, magistralmente vivido por Paulo Gracindo, como referência desses marcos históricos.

Desde o ano passado, vira e mexe aparece no meu WhatsApp um trecho da novela que mostra Odorico confabulando com seu Dirceu Borboleta, trabalho excepcional de Emiliano Queiroz, para obter a exclusividade da distribuição da vacina para o povo de Sucupira, a fim de evitar que outros levem os louros pelo imunizante.

Se fosse uma esquete de programa de humor produzida hoje não seria tão atual.

Mas, ao contrário de Jair Bolsonaro, Odorico não consegue contar com uma só cova durante seu mandato. Assim como Jair, ele não é coveiro. Acontece que Odorico se elegeu sob um slogan muito particular: “Vote em um homem sério e ganhe um cemitério”.

A fictícia Sucupira, no entanto, tem moradores saudáveis. Ninguém morre na bendita cidade baiana, vizinha da Salvador onde nasceu Dias Gomes (1922-1999). E Odorico, louco para cumprir sua promessa de campanha, manda trazer de volta ao município o matador de aluguel mais famoso da região, Zeca Diabo, personagem de estreia de Lima Duarte na Globo -aí está mais uma referência da produção.

Odorico promete a Zeca que ele pode voltar e lhe fará um favor se puder matar alguém. Em troca, garante que ele não será preso por isso. Mas o assassino, dono de tantas vidas já enviadas ao além, resolve, justamente nessa altura da vida, que quer ser um homem direito, livrando-se de seus pecados em tempo de ser recebido pelo reino dos céus quando passar desta para melhor.

Soube só recentemente, pelo ótimo livro “Herói Mutilado – Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura” (Cia. das Letras), da colega Laura Mattos, que Guarapari (ES) guarda uma história muito parecida com a de Sucupira, de 1906, tendo o prefeito lá esperado por mais de dez anos até que alguém morresse para inaugurar um cemitério, em vão. Foi preciso “roubar” uma morta cuja cova caberia ao município vizinho, fazendo as honras do funeral por conta dos cofres da prefeitura, visto que se tratava de uma andarilha.

O melhor de “O Bem-Amado” é o que nos parece pior hoje: a capacidade de retratar o país em períodos tão distintos, sem perder o frescor do deboche ali retratado, no escárnio de seus políticos oportunistas. Mas não se engane: Odorico errava nos entretantos e nos finalmentes, mas mantinha a pompa e circunstância do cargo. Nada de palavrões ou citações sobre as próprias hemorroidas, longe disso. Repare que ele tinha lá sua elegância.

Sucupira, entretanto, é bem aqui ainda hoje, piorada pelo prejuízo dos modos e do vocabulário.

Subvertendo a lógica do melodrama, o protagonismo cabia a dois homens: Odorico e Zeca Diabo (*). Quase na mesma linha de frente estava não uma, mas um trio de mulheres, as famosas Irmãs Cajazeiras, solteironas que esbanjavam libido ao bajular e serem bajuladas por Odorico, nas vozes de Ida Gomes, Dorinha Duval e Dirce Migliaccio.

Tintura preta na farta cabeleira, ternos alinhados, acento nordestino, Odorico e cia. conseguiam fazer passar no horário nobre da TV tudo aquilo que os censores do então presidente Emílio Garrastazu Médici vetavam no Jornal Nacional.

A ficção, naqueles dias, mandava o seu recado de uma maneira que não era permitida aos noticiários, e olhe que Dias Gomes, como convicto comunista, costumava ser vigiado com marcação cerrada dos militares, como relata Laura Mattos em seu livro, fruto de tese de mestrado na USP e de uma minuciosa pesquisa sobre o autor.

Vale reproduzir aqui um trecho em que ela fala sobre as relações entre a novela e a censura federal:

“[…]’O Bem-Amado’ seguiu com sucesso de público e de crítica e sem incômodo da Censura por mais de cem capítulos. Dias Gomes condenava o coronelismo por meio do prefeito corrupto Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo), mas o fazia em tom afetivo, o cabra era para lá de simpático. Nossos modernos generais não teriam muito que se preocupar com o arcaico coronel do Nordeste. Mas acabaram percebendo que Sucupira não era tão distante assim de Brasília. Quando faltava menos de um terço para a novela acabar, a Divisão de Censura de Diversões Públicas decidiu emitir um parecer com os ‘problemas’. Os pareceristas apontaram a ‘extrapolação’ da ‘nuance puramente regional’: ‘As situações afloradas, pelo seu duplo sentido, a essa altura dos acontecimentos, podem ser claramente interpretadas como alusivas à conjuntura nacional, particularizando instituições, pessoas ou mesmo outros valores consagrados’. Dos 177 capítulos, 133 foram liberados sem alterações e 44 com vetos. Eles se deram em torno de cenas que continham críticas a instituições e à autoridade, da prefeitura às Forças Armadas, do latifúndio à Igreja católica. Dentro os cortes que a Globo foi obrigada a fazer, ficaram famosos os dos termos ‘coronel’, usado para o prefeito Odorico, e ‘capitão’, para o cangaceiro Zeca Diabo (Lima Duarte). A cinco capítulos do encerramento, o personagem Cabo Ananias foi obrigado  a perder a patente. Muitas vezes, os episódios já estavam gravados e editados, e o diretor, Paulo Ubiratan, tinha de cortar os filmes com gilete, perdendo cenas inteiras. A Censura também se voltou à ‘moral e aos bons costumes’. Zelando pela virgindade, pelo casamento e pela família, cortou, por exemplo, uma cena em que uma personagem caía na areia da praia e tinha cusa calcinha focalizada pela câmera. Nada de sescualidade, de adultérioi ou de drogas.[…] “

(*) As boas relações entre Paulo Gracindo e Lima Duarte na vida real encontrariam, anos depois de “O Bem-Amado”, uma herdeira em comum: a neta Daniela Duarte, filha de Débora Duarte e Gracindo Júnior, que comanda a bem-sucedida Oficina e o Festival do Pequeno Cineasta, curso e mostra de cinema voltados aos pequenos.

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Cristina Padiglione

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