Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

O jornalismo da Globo está em ‘guerra’ contra Bolsonaro?

William Bonner e Renata Vasconcellos à frente do JN / Reprodução

Houve quem me contestasse porque tratei Boni, entrevistado nesta segunda-feira (14) no Roda Viva, como gênio. Sim, apesar do apego ao modelo de discrição que ele nutre em torno dos assédios que ocuparam a televisão no passado (e não que isso não ocorra em outro tipo de empresa, mas a vaidade provocada pela tela, vitrine para a fama, exacerba essa moeda), José Bonifácio de Oliveira Sobrinho responde em meia-dúzia de palavras e com precisão cirúrgica aquilo que outros profissionais levam três dias de seminário para explicar.

Assim falou sobre o cenário do streaming x TV aberta: com simplicidade, objetividade e lógica, ao alcance de todos os ouvidos, sem tecnicismo. Assim falou sobre o universo que une TV e internet. Espinafrou as lives musicais sem dó nem ressalvas, e olhe que as de Gilberto Gil e Caetano Veloso foram incríveis.

Mas um assunto da maior importância saiu truncado neste Roda Viva. Quando Tonico Ferreira, ex-repórter da Globo, fala sobre “a guerra” entre o jornalismo e o governo de Jair Bolsonaro, expressando a dificuldade que hoje temos no jornalismo, de noticiar com objetividade fatos científicos que muitos colocam em dúvida, o próprio Ferreira utilizou a palavra “guerra”. E Boni reagiu lamentando que “o jornalismo tenha “entrado nesta guerra”.

Referiam-se sobretudo à Globo, mas poderia ser a qualquer veículo que hoje procura simplesmente praticar a essência do jornalismo, defendendo os interesses públicos, não Deus ou as questões privadas da família do presidente.

Isso seria guerra? A meu ver, não. Apontar os erros de quem ocupa um cargo eletivo e é pago pelo povo para honrar os interesses do povo é obrigação da imprensa, não um componente de guerra, mas pode se transformar em um conflito, aí de modo involuntário para a imprensa, quando o protagonista da notícia não respeita os valores democráticos que fazem dele um alvo de cobrança mais do que natural para o posto que ocupa, pleiteado por ele mesmo.

Dizer que a imprensa entrou em “guerra” com o presidente é concordar com o conceito de bom jornalismo adotado por ele, que só vê qualidade no exercício da profissão de veículos que não o contestam, como Record, SBT e RedeTV!

A Globo não foi menos incisiva com os erros de Lula, Dilma ou Temer (talvez tenha demorado a cobrar os erros de Fernando Collor, pelo qual Roberto Marinho tinha algum apreço, e pegado mais leve com Fernando Henrique, cujas denúncias de compras de voto no Congresso para a reeleição, por exemplo, foram noticiadas com muita discrição, sem falar em outros impasses).

Mas quem acha que a “guerra” com Bolsonaro começou já nas raras entrevistas que ele deu, ainda como candidato, só pode trabalhar na sua torcida ou não viu as outras entrevistas feitas por William Bonner e Renata Vasconcellos no Jornal Nacional e por jornalistas da GloboNews, igualmente incisivas e prontas para cobrar os erros do passado de cada um: Fernando Haddad, Ciro Gomes, Marina Silva, Geraldo Alckmin e Henrique Meirelles.

De homenagear currículos, afinal, a propaganda eleitoral já se ocupa bastante e costuma remunerar muito bem a grandes profissionais de comunicação para a construção de discursos positivos.

A obediência cega ao que Jair Bolsonaro chama de bom jornalismo não pode ser parâmetro para tratarmos como “guerra” tudo que não se encaixe nisso. O JN foi incisivo na cobrança do poder público em contexto de pandemia, com milhares de mortes e a omissão de um chefe de estado que minimizou o vírus em várias ocasiões, desprezou o uso da máscara e contribuiu para um isolamento mal executado.

Vá lá que a Globo tenha sacado aquela aterrorizante vinheta de plantão no meio da novela das nove, uma vez, para noticiar os mortos por Covid-19 no primeiro dia em que o governo resolveu retardar o anúncio de vítimas fatais das últimas 24 horas. Nessa ocasião, sim, a Globo pode ter passado recibo da piadinha do presidente, que poucas horas antes zombou do atraso sobre a divulgação de dados da doença e disse que, sem a informação, não haveria Jornal Nacional.

No mais, o que chamam de “guerra” é só a independência de quem não se submete a ameaças pela perda de anúncios do governo ou pela perda da concessão. Boni bem lembrou no Roda Viva que só uma emissora foi cassada por questões políticas: a Excelsior, pela ditadura militar.

Abaixo, o trecho em que Boni fala sobre as ameaças de Bolsonaro à Globo.

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