Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

No humor do Porta dos Fundos, Jesus gay incomoda mais que Jesus do mal

Gregório Duvivier é Jesus e Fábio Porchat, Orlando, seu melhor amigo/Reprodução

O pessoal que vem pregando o fim da assinatura da Netflix por causa do atual especial de Natal do Porta dos Fundos, “A Primeira Tentação de Cristo”, está ofendido exatamente com o quê?

Diferentemente do Cristo de Fábio Porchat no especial “Se Beber não Ceie”, disponível desde dezembro passado e que acaba de faturar o Emmy Internacional como melhor comédia do ano, o Cristo de Gregório Duvivier no programa deste ano é gente boníssima: não faz mal a ninguém, apenas questiona sua vocação para pregar a palavra de Deus.

Ah, sim, Jesus agora é gay, tem isso.

Se os signatários do abaixo-assinado que protestam contra o programa estão mais incomodados com o especial deste ano do que com o Cristo profano e escroto do ano passado, só se pode tirar uma, entre duas conclusões:

  1. Eles não viram “Se Beber não Ceie”.
  2. Essa gente se incomoda muito mais com o fato de Jesus ser gay do que com a possibilidade de ele ser escroto.

Qual das duas alternativas será a correta? Honestamente, pela gritaria da vez, só posso suspeitar que ser gay incomoda aos cristãos intolerantes mais do que ser do mal, ainda mais porque quero crer que “Se Beber Não Ceie” tenha tido uma repescagem de púbico após o anúncio do Emmy, tendo sido visto por muita gente também.

Além disso, tem Deus, que no especial ganha uma leitura brilhante de Antonio Tabet, um escroque que fica tentando seduzir Maria (Evelyn Castro) bem nas barbas de José (Rafael Portugal) e usa seus poderes para fazer valer suas vontades.

Repare bem: ninguém mencionou Deus até aqui, só o Jesus gay de Duvivier.

Antonio Tabet é um Deus do mal em ‘A Primeira Tentação de Cristo’/Reprodução

Talvez os gays, sim, devessem se rebelar muito mais que os cristãos, afinal, Orlando, o amigo de Jesus, uma mona divertida (e perigosa) vivida por Porchat em “A Primeira Tentação…”, representa na trama o Satanás. Imagine se a comunidade LGBT agora for protestar porque o demônio é homossexual?

As melhores comédias são aquelas que tiram o espectador da sua zona de conforto e fazem pensar, além de fazer rir, claro – desde que se esteja disposto a tanto. Ninguém ali quer botar em xeque a fé alheia, ou não em Jesus, figura mítica usada então para provocar uma reflexão muito mais ampla: até que pontos os heróis são tão desumanos como costumamos pintar, atingindo uma perfeição irreal?

Quem não puder rir em meio a um questionamento precisa urgentemente ampliar seu senso crítico, sua percepção de humor e da tolerância que tanto prega, porque o mundo pode ser muito chato quando a gente só ouve aquilo em que já acredita.

Por fim, não custa lembrar os manifestantes de fervorosa fé que a Netflix tem novelas bíblicas e muito mais conteúdo pregando a palavra de Deus sem contestações (e sem humor) do que cenas inspiradas pelo genial e sagrado humor do Monty Python, que muitos anos atrás já brincavam com a família de Jesus, Maria e José.

Amém. Confira abaixo um trailer do especial.

Leia aqui sobre o especial do grupo do ano passado na Netflix, vencedor do Emmy:

Especial de Natal do Porta dos Fundos é provocador, como convém ao humor

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