Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Fernanda Montenegro nos ensina a valorizar o lado bom da pandemia

Fernanda Montenegro e Fernanda Torres em cena do epiísódio "Gilda e Lúcia", que abre a série "Amor e Sorte" na Globo. Foto: Andrucha Waddington

           “A gente tem os filhos da gente, uma hora eles se juntam a outras pessoas, de outras origens e formam um novo núcleo, e aquele núcleo original fica ali e se respeita muito o que cada um segue na vida. Mas neste momento, lá nos nos reunimos novamente, e nós nos integramos novamente, como se ainda houvesse um futuro a sair pela porta e um outro futuro adiante. É como se fosse uma família com filhos pequenos que chegam à adolescência e vão para as suas vidas, e nós voltamos a nos encontrar ali fechados, durante quatro meses, e nos encontramos de uma forma não pegajosa, mas amorosa, e muito humana, sem demagogia: isso está na feitura do nosso filme”.

 

Assim Fernanda Montenegro, 90 anos feitos e bem vividos, definiu a sensação de ter sob o mesmo teto a filha, Fernanda Torres, os netos Joaquim e Antonio, e o genro, Andrucha Waddington, que ali contou ainda com seu primogênito, Pedro, do primeiro casamento, e o sobrinho, Davi. A pandemia do novo coronavírus, essa peste, como diz dona Fernanda, indiretamente lhe deu, aos 90 anos, a chance inédita de uma convivência intensiva com os netos e a filha, que há tanto tempo já tem endereço diferente do seu.

Digo indiretamente porque não foi a pandemia, em si, que os uniu, mas sim a iniciativa de gravar um episódio de “Amor e Sorte”, nova série da Globo, idealizada por Jorge Furtado, que une familiares no contexto da pandemia.

“Imagina o que é uma avó, de 90 anos, de repente, estar com os netos trabalhando? É muito bonito ver seu campo de trabalho, de vida, de criatividade adiante, com os netos, além dos filhos. É tão acolhedor, é um amparo. Tem um encanto nesse nosso viver vocacional, profissional que a moçada não deixa de se contaminar.”

Melhor que isso é que a ocasião estará eternamente registrada em uma produção de TV. O capítulo que une as Fernandas é o único que dispensa o protagonismo de um casal. “Eu já voltei até para a análise porque vai parecer que eu e mamãe somos um casal”, brinca a filha.

Ela participa da elaboração do roteiro, assinado por Antonio Prata e Chico Mattoso.

Por quatro meses, as Fernandas, Andrucha, Pedro, Davi e mais vinte pessoas ficaram confinadas no sítio da família em Petrópolis (RJ). Como há uma casa extra no terreno, e até cenográfica, como conta Fernanda Torres, toda de vidro, com vegetação vazando à luz do dia e efeito de espelhos em cenas noturnas (retratada, aliás, na foto deste post), o local lhes serviu de estúdio e a família teve condições de separar vida pessoal e profissional.

“Nunca foi tão rápido sair do estúdio, tomar um banho e estar em casa”, comentou a filha.

Na ficção, o roteiro volta a unir mãe e filha com conflitos geracionais, mas longe do lugar comum: a mais velha é a cabeça libertária, criada nos anos 60 e 70, quando o mundo “era livre”. A mais nova é a careta da história, vegetariana, mas comunga de uma ideologia mais à direita e está ocupada em demitir funcionários de sua empresa para salvar as finanças.

A mãe come carne e é de esquerda. É alguém que, se puder, esconderá da filha a descoberta da vacina, só para poder levar adiante essa convivência que veio a melhorar uma relação muito tumultuada. Em determinada cena, a filha vegetariana tentará caçar no galinheiro uma refeição para a mãe, demonstrando ali sua boa vontade com as escolhas da matriarca.

Waddington elogia as galinhas, assim como um bode emprestado do vizinho para determinada cena protagonizada pelo filho Joaquim. “Em uma produção da Globo, você pede um bicho em cena e pode aparecer uma girafa, mas aqui nós tínhamos que ver o que havia no sítio para trabalhar com o possível”, conta Prata.

“No roteiro, aliás, era uma cabra. Não tinha cabra, mas o vizinho emprestou o bode, ele foi maravilhoso. Falamos para o vizinho que só precisaríamos dele dali a cinco dias, mas ele já disse: ‘não, não estarei aqui, então vocês já pegam o bode agora’. E ele passou uma semana com a gente”, conta Torres.

Pergunto se a galinha, outro bicho de atuação elogiada pelo diretor, era melhor que a galinha de Fernando Meirelles em “Cidade de Deus”, guardadas as diferenças de enredo, claro. “É, aqui é outro contexto”, reforça Andrucha, “mas elas colaboraram muito”.

“Eu tenho uma certa aflição, porque a galinha é um bicho que você não sabe onde acaba a pena e onde começa a carne, a mão afunda naquilo, sem noção de onde pegar. Mas a gente gravou por tantas horas, que no final as galinhas já estavam exaustas, nem fugiram mais”, conta Torres.

O expediente foi puxado. “Para que as Fernandas trabalhassem 1o horas por dia, nós trabalhávamos 16″, contou Waddington.

“Teve momentos de sindicalismo forte, dizendo que o trabalho estava muito pesado, a ponto de abolirem o almoço”, brincou Torres.

“Não, não, almoço teve todo dia”, corrigiu Andrucha, recebendo logo uma intervenção da sogra: “Não, a revolta veio porque todo dia só tinha almôndega”.

Os lanchinhos dos intervalos, no entanto, foram garantidos por Antonio, caçula de Fernanda Torres e Waddington, que a mãe revela ter uma paixão pela cozinha e tem tudo para se profissionalizar no ramo.

“Mas ele estava em período escolar e só aparecia nos intervalos, fazendo aí o serviço de catering”, intervém o pai.

As Fernandas mencionam que a história se passa nesse período de pandemia, mas tem “ternura” e poderia ocorrer em qualquer outra condição. “Elas poderiam estar lá presas porque uma ponte quebrou e elas não conseguem sair de lá. E a mãe poderia saber que já consertaram a ponte, mas não avisa a filha, só para manter aquela convivência”, menciona Prata.

A CONSCIÊNCIA PELOS 90 ANOS

O expediente foi também um convite para que Fernanda Montenegro enfim se desse conta de seus 90 anos.

“Há uma terapia ocupacional, né? Uma coisa é ir de vez em quando àquele lugar para alguns dias, outra é passar ali quatro meses. Você começa a ver as coisas que devem ser arrumadas, tem que ver a roupa de inverno, a bomba d’água. E teve leitura e sol. Aproveitei para tomar sol, importante na minha idade. Também veio a consciência dos meus 90 anos. Engraçado, até o ano passado, até a chegada desse vírus, vinha tocando a vida. O vírus, já que nos aprisionou, você começa a pensar nos seus 90 anos: será que isso aqui vai acabar agora? Vai ter vacina? Não vai? Primeiro achamos que ia durar dois, três meses, então agora que vimos que não, tá todo mundo indo pra praia, pro bar, mas a consciência dos meus 90 só veio agora, de repente eu fui indo, fui indo, e não tinha me dado conta. E agora que me aprisionaram, passei a pensar na minha própria grade. É isso.”

“Amor e Sorte” estreia em 8 de setembro, após a novela das nove, justamente pelo episódio das Fernandas, “Gilda e Lúcia”, e traz mais três histórias, um com cada dupla: Taís Araújo e Lázaro Ramos, Luísa Arraes e Caio Blat, além de Emílio Dantas e Fabíula Nascimento. Todos os outros têm direção de Patrícia Pedrosa e todos têm idealização de Jorge Furtado, diretor e roteirista que logo pensou nos amigos mais próximos quando lhe veio a ideia de criar enredos para pessoas que já estavam juntas na pandemia.

O expediente deu aos atores a chance de conhecer de modo inédito as engrenagens de luz, áudio, figurino, direção de arte e fotografia no set, já que o propósito era trabalhar com o mínimo de pessoas possível, para evitar aglomerações.

“Nós subimos a serra e, em algum momento, a gente aceitou aquele lugar como nosso. Quando veio a filmagem, foi uma espécie de coroação, quase como se fosse uma foto em homenagem a um momento da nossa vida. Esse episódio veio como uma memória. A gente conseguiu que fosse não numa foto, mas em um episódio de 40 minutos, onde estamos todos representados. Nossa família inteira e aquele lugar que nos salvou. Éramos uma equipe de cinco pessoas. Aí, o diretor definia ‘É aqui o quadro’. Limpar um canto, arrumar o cenário, iluminar… saíamos todos carregando refletor. Para mim, foi uma espécie de auge daquele período e é algo que eu nunca vou esquecer na vida”, lembra Fernanda Torres.

A mãe completa: “Gravou um momento de comunhão familiar, artística, a possibilidade de sobrevivência diante do vírus. Tivemos a oportunidade que a vida e a nossa batalha de sobrevivência nos deu: um espaço pra gente poder ir para a natureza, fechados dentro de um combo, uma vastidão de céu , de verdade, tivemos um momento especial que a vida nos deu, e pela qual lutamos, e veio ao acaso. E o acaso tem sempre a última palavra, como diz Simone de Bevoir”.

 

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Cristina Padiglione

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