Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

‘Os Melhores Anos de Nossas Vidas’ embute informação na diversão, mas falta azeitar a receita

Lúcio Mauro Filho, Paulo Ricardo, Lázaro Ramos e Pepeu Gomes no programa 'Os Melhores Anos de Nossas Vidas' / Reprodução

Versão de formato internacional que estreou nesta quinta-feira, na Globo, a gincana “Os Melhores Anos de Nossas Vidas” promove duelos entre décadas, englobando os anos 60, 70, 80, 90 e 2000. Cada década é representada por um ator, não necessariamente que tenha nascido e crescido no período que representa. Marcos Veras, por exemplo, representará os anos 60, tendo nascido nos 80. Uma plateia de jovens que nasceram nos anos 2000 julga, a partir das reações de cada ator e dos convidados a defender cada período, quais são os melhores anos de cada embate.

Não fosse por inserções jornalísticas que contextualizam cada época com os fatos mais relevantes, estaríamos diante de uma versão atualizada, anabolizada e por isso melhorada do “Globo de Ouro” (antigo programa semanal da Globo, não o prêmio de cinema e TV dos Estados Unidos).

É pertinente que uma atração toda empacotada no verniz do bom entretenimento apresente aos mais jovens noções que têm feito falta à compreensão de um passado tão recente como a era pré-internet e o período da ditadura militar no Brasil. Essas duas percepções foram mencionadas na edição de estreia, assim como a queda do Muro de Berlim, enfatizada pela presença de Pedro Bial em cena, relatando como ele entrou no ar ao vivo na primeira transmissão internacional direta que não fosse de evento esportivo.

Bial relatando a nova Alemanha unificada, em 89

Bial fez um voto público pela década de 80 em razão da reconquista da democracia, quando finalmente tivemos o direito de opinar livremente, sem sermos censurados em nossas posições e informações. Alertou que muitos ali já chegaram ao mundo com essa democracia estabelecida e não têm a dimensão da dificuldade que houve em conquistá-la. O momento, para frisar isso, é mais do que oportuno.

Convidado da mesma edição, Paulo Ricardo lembrou que o RPM teve músicas censuradas, naquele finzinho de governo militar que antecedeu o surgimento da banda, na primeira metade da década de 80.

Todas essas informações, trazidas por quem viveu aqueles anos, são de um valor inestimável ao conhecimento de uma plateia muitas vezes mais interessada em entretenimento do que em documentários. Ditas assim, em meio aos hits musicais, figurino e coreografia daquele passado, são quase um merchandising social para agregar repertório ao público, com alcance de veículo de massa.

Massa.

Com apresentação de um Lázaro Ramos confiante no papel em questão, o programa traz Ingrid Guimarães defendendo os anos 90 e Lúcio Mauro Filho vestindo a camisa dos anos 80. Veras, como já foi dito, está à frente da década de 60, enquanto Marco Luque representa a década de 70 e Rafa Brittes, os anos 2000.

A proposta é bacana e o elenco até aqui apresentado dá conta do recado. Mas falta azeitar a receita. Há arestas soltas entre uma apresentação e outra, e vamos aí dar um desconto porque tudo é novo nesse início de produção. Por mais que o formato venha pronto no catálogo da Endemol Shine, proprietária da ideia, só a prática permitirá que o prato seja de fato testado, para ajustar os temperos finais.

Só que o roteiro, apoiado em vasto trabalho de pesquisas, tampouco pode se dar ao luxo de forçar a barra para fazer valer a atração.

Já na estreia, houve ruído nesse sentido. Convidado a defender os anos 90, Pepeu Gomes cantou lá “Sexy Iemanjá”, que foi tema de abertura do remake de “Mulheres de Areia” (1993). Até aí, tudo bem. Mas, perguntado por Lázaro qual foi a virada sofrida em sua carreira nos anos 90, justificou que só então ele resolveu cantar. “Na verdade”, disse Pepeu, “foi o primeiro sucesso que eu tive, nacional, porque até então eu defendia só aquela bandeira do guitarrista, do músico. Em 90 eu resolvi realmente virar um cantor popular.”

Não é verdade. Para sustentar sua presença na dita década, Pepeu passou por cima de todos os hits que emplacou nos anos 80, e não foram poucos: “Flor do Desejo”, “Fazendo Música Jogando Bola”, “Deusa do Amor” e talvez o maior de todos, “Masculino e Feminino”, de 1983, hino vanguardista da figura masculina como ser frágil e sentimental. Além do valor icônico da canção, “Masculino e Feminino” tocou exaustivamente nas rádios e, como me avisa o super Nilson Xavier, um verdadeiro Google de novelas, também esteve em trilha sonora de novela – “Eu Prometo” (1983) – e só não foi tema de abertura, como “Sexy Yemanjá”.

Mas a mesma canção, como me acrescenta o leitor Antonio Antunes, foi tema de abertura do seriado “Casal 80”, com John Herbert, Célia Helena e Mayara Magri, exibido pela Band, em 1984. (*)

Para quem, como esta escriba, viveu aquele período, era de se pensar se não teria sido melhor localizar Pepeu nos anos 80, uma escolha que remeteria a uma representatividade muito maior. Mas, se assim fosse, como colocar Paulo Ricardo nos anos 90? Não havia nada mais de RPM que interessasse na década seguinte. Deu a impressão de que a produção dispunha de duas opções para anos 80 e tentou aproveitar as duas em duas décadas distintas.

Paulo Ricardo contou uma história melhor que a de Pepeu, ao citar o pavor que a palavra “Revolução”, presente na letra da música e no próprio nome da banda, ainda causava no governo militar. Se o script queria alguém para relatar um caso de censura, Pepeu, ex-integrante dos Novos Baianos, teria muito mais a dizer, já que sua carreira passa pelo auge da ditadura, e não apenas pelo finzinho do regime militar.

Em 1980, Pepeu e Baby Consuelo (hoje Baby do Brasil), então sua mulher, tiveram censurada uma música do Festival de MPB Shell da Rede Globo, vista como apologia à maconha. A letra dizia que você pode comer, beber e fumar, desde que possua, sem ser possuído. Era uma alusão à não dependência, na linha “não se deixe levar”, “não se deixe possuir”. Acontece que o verso ditava “Você pode comer / baseado em que você pode comer quase tudo (…) Você pode beber / Baseado em que você pode beber quase tudo (…)  Você pode fumar / Baseado em você pode fumar quase tudo (…)”, o que chegava à frase “você pode fumar baseado”. Era um caso muito mais rico a ser resgatado do que a breve sanção sofrida pelo RPM, que nunca foi uma banda de engajamento político, ao contrário dos Novos Baianos e seus integrantes.

De todo modo, “Os Melhores Anos de Nossas Vidas” vale a pena ser visto por todas as idades.

Como a equipe explicou durante a entrevista de lançamento do programa, será inviável englobar tantas informações de  costumes, fatos, hits e histórias em cada edição. Até por isso, se a ideia cair no gosto do público, outras temporadas virão, com boas chances de contar e cantar muitos outros repertórios.

“Os Melhores Anos de Nossas Vidas” vai ao ar às quintas-feiras, após “Carcereiros”, na Globo.

 

(*) Informações atualizadas em 14/10, às 12h34

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Cristina Padiglione

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