‘Os Outros’ toca em feridas que vão bem além dos efeitos da intolerância
O Globoplay fechou na sexta-feira (7) a 1ª temporada de “Os Outros”, série de Lucas Paraízo que rouba nosso foco do que quer que seja. Há duas semanas, escrevi pela coluna Zapping, na Folha, que a série consome nosso raciocínio e o espaço dedicado a problemas reais do nosso dia a dia. Deixamos de pensar na vida real para nos ocuparmos dos problemas dos personagens. Na ocasião, me consumi pela dor de Rogério, personagem brilhantemente interpretado por Paulo Mendes e por quem nutri profundo desprezo no primeiro capítulo.
Desde o penúltimo episódio, minha preocupação se voltou para Marcinho, um trabalho não menos exímio de Antonio Haddad. Além de nos mobilizar pelo texto de Lucas Paraízo e pela direção de Luísa Lima, a série sacramenta para a indústria audiovisual três nomes fortes na safra de jovens atores, citando, além dos dois garotos que detonam o conflito inicial, a atriz Gi Fernandes, que vive Lorraine.
É nela que se concentra o abuso do homem sobre o corpo da mulher no episódio final (ATENÇÃO, CONTÉM SPOILER), quando seu pai, o miliciano Sérgio, que faz a gente esquecer a veia cômica de Eduardo Sterblitch, providencia um aborto para a filha, sem lhe dar qualquer participação na decisão sobre o ato em questão.
O fato foi só mais um entre outros casos de apropriação indevida do território feminino, ao longo de 12 episódios.
Logo no 1º capítulo, Mila, personagem que consolida e amplia a maestria de Maeve Jinkings, transa contrariada com o marido, Vando, papel que põe Milhem Cortaz no nosso radar mais visceral. Fissurado no seu mundinho de macho ferido por uma demissão, ele faz questão de não notar a repulsa da mulher na cama. A seguir, uma sequência em que Mila limpa o resquício de esperma na coxa, sozinha, no banheiro -cena cortada da edição exibida pelo Tela Quente, na Globo-, endossa a agressividade do ato e seu potencial invasivo, de modo silencioso.
Poucos capítulos depois, temos Sergio chantageando Cibele, outra mulher para nos colocar aos pés de Adriana Esteves. Dá-se ali um estupro consentido, digamos assim, em troca da dívida que ela não pode pagar. Enojada, Cibele narra o episódio ao marido, e me desculpem por tantos adjetivos para enaltecer os atores, mas sou forçada a me derreter pelo bom mocismo cheio de defeitos de Amâncio, mérito de Thomás Aquino.
A genialidade do elenco se completa em Drica Moraes, a síndica que se acha esperta para o mundo do crime, mas não entende a distância entre os delitos de colarinho branco e da milícia, e seu marido, vivido por Guilherme Fontes, que aparece menos em cena, mas deixa a primeira temporada de modo marcante para a sequência que ainda virá.
O GloboPlay anunciou a confirmação de uma 2ª temporada antes mesmo da estreia desta 1ª safra. Vai ser sofrido aguentar até o ano que vem para conhecer o destino das pessoas que restaram vivas (sim, aqui vai outro pequeno SPOILER, já que alguns óbitos estão pelo caminho desses 12 episódios).
Cabe agora dizer que “Os Outros” vai bem alem da intolerância, mote que norteia a premissa central do enredo, quando uma agressão a um adolescente desencadeia uma série de atos violentos e impensáveis dentro de um condomínio de classe média onde os moradores buscam alguma sensação falsa de ascensão social, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro.
A série nos traz a aposta em talentos promissores, a abordagem da violência contra o corpo feminino sob vários aspectos, o estrago trazido pelas milícias, que crescem e aparecem em razão do vácuo deixado pelo poder público, a corrupção revestida por diferentes embalagens, assim como a violência em todos nos níveis e o machismo estrutural como elemento tóxico, capaz de matar.
Diante de tantos confetes jogados sobre “Os Outros”, tenho visto em redes sociais uns poucos comentários de gente que atribui à série um caráter muito denso e pesado. “De problemas, já basta a minha vida”, reza o raciocínio de quem foge do enredo. Pois eu digo que justamente por me apresentar problemas bem mais graves que os meus, deixo o sofá mais leve, achando minha vida uma maravilha.
E sigo pensando naquelas pessoas e nas chances de mudarem os seus destinos “se” não tivessem dado este ou aquele passo. Aplicar o “…e se” às ações de Marcinho, Lorraine, Sérgio, Lúcia, Rogério, Amâncio e Mila, mas, principalmente, a Cibele e Vando, é um exercício da mais alta eficiência para voltar à vida real com mais noção da nocividade provocada pela sede de vingança e pelo ressentimento.
Por fim, mesmo aplaudindo com entusiasmo todo o cast principal, devo dizer que a competência de Adriana Esteves em afetar a plateia diante das telas, provocando ódio, amor, compaixão e piedade, é algo sem paralelos atualmente, dentro de um leque de diferentes mulheres vividas por ela nas duas últimas décadas.