Por Cristina Padiglione | Saiba mais
Cristina Padiglione, ou Padi, é paga para ver TV desde 1990, da Folha da Tarde ao Estadão, passando por Jornal da Tarde e Folha de S.Paulo

Problema de ‘O Mecanismo’ não é ideológico, é estrutural: série subestima público

Enrique Diaz, o melhor motivo para se ver 'O Mecanismo', e Selton Mello, prejudicado pelo áudio

Nova série da Netflix, “O Mecanismo” tem sido capaz de mobilizar a fúria do Fla-Flu político em um grau até maior (porque concentrado em poucos dias) que as cenas do noticiário.

Mas o grande mal da obra dirigida por José Padilha, no ar pela Netflix desde sexta-feira, é estrutural, não ideológico.

Com diálogos recheados de clichês repetidos em curta distância entre um episódio e outro, “O Mecanismo” só não é mais rasa do que a novela das nove da Globo, “O Outro Lado do Paraíso”. É compreensível, mas nem por isso aceitável, que uma novela invista em um texto em linha reta, sem nuances, para hipnotizar o espectador que, jogado no sofá, adora receber tudo mastigado. É por isso que a audiência responde tão bem ao maniqueísmo dos personagens de Walcyr Carrasco, divididos entre os bons e os maus.

Em uma novela, tem sempre alguém lembrando o que o outro fez no capítulo anterior e um flashback para salvar os espectadores que perderam o capítulo da véspera ou de três meses atrás, nem que tenha sido só por ter ido à cozinha buscar uma água.

A repetição e o texto em linha reta, no entanto, são recursos preguiçosos, são o caminho mais fácil para cair no gosto popular, sem precisar fazer o público pensar. Daí a certeza de que o valor de uma novela que consegue fugir disso, fazendo a plateia refletir e mesmo assim não mudar de canal, é muito maior.

Em uma série de TV via streaming, como é o caso de “O Mecanismo”, tudo o que se espera da narrativa é que ela se mostre inventiva, capaz de nos mobilizar por bons diálogos e situações, sem cores e caráteres chapados para o mal ou para o bem. E isso é tudo o que Padilha não nos entrega.

A fotografia, a montagem e a performance dos atores são irrepreensíveis, nada a desejar às boas produções internacionais da própria Netflix. Aliás, se há um motivo para ver “O Mecanismo”, ele atende por Enrique Diaz: perfeito como o doleiro Ibraim, ele economiza no gestual e na voz, com precisão, e impressiona só pelo olhar.

Na contramão disso, vem o áudio, com Selton, o delegado herói, exagerando no tom de voz de tele-sexo para uma narração extremamente longa, que cansa a plateia e, francamente, denota a falta de vontade de roteirista e diretor em criar dramaturgia no lugar de verborragia. Denuncia, especialmente, o temor de que o público não vai pensar nem vai entender a história, se alguém não estiver prontamente a lhe informar as intenções de cada personagem.

A narrativa em primeira pessoa, como aconteceu com o nobre Capitão Nascimento (Wagner Moura) em “Tropa de Elite” já foi recurso que se desgastou em “Narcos”, também de Padilha, que traz outro policial narrando a trama. Fazer isso mais uma vez, a essa altura, como se essa fosse a grande genialidade de suas obras anteriores, é cansativo, enfadonho, repetitivo, chega a ser ofensivo à inteligência do espectador, e vou parar por aqui porque adjetivo demais também contribui para um texto ruim.

Entre os sussurros do protagonista e os picos de tensão da série, você não consegue assistir a meio episódio sem abrir mão do controle remoto, com o dedo no sobe e desce do volume. Chatice.

A falta de ambiguidade dos personagens é outro recurso que conspira contra a riqueza dramatúrgica. Os bons heróis, hoje em dia, muito mais do que nos anos 60, têm lá suas fraquezas, como endossa até o Batman ou o Homem de Ferro. Nosso Rufo, o delegado destruído pelo empenho em estancar o doleiro, é só ética e justiça, sendo inclusive vítima do “sistema”, personagem que Padilha ama citar, desde “Tropa de Elite”.

Ibraim, seu antagonista, é mau muito mau, sem qualquer ponto fraco. Chatice.

Dito tudo isso, vamos ao foco do Fla-Flu motivado pela série.

Estamos tratando de ficção, e tem de ser dada ao diretor a licença de se movimentar nesse universo inspirado pela Operação Lava-Jato, como anuncia a premissa da obra. Mas…

Uma vez que se coloque em cena personagens, frases e  situações reais, não é possível trocar estações à vontade. A histórica frase de Romero Jucá (aquela que fala em um “grande acordo nacional para estancar a sangria” e acabar com a Lava-Jato) é dita na boca de Lula, quando o ex-presidente, no caso, combatia naquela ocasião justamente a tentativa de derrubar o governo Dilma. Não há a menor equivalência entre os dois personagens. Se a frase fosse de José Dirceu, dita na boca de Lula, poderíamos até relevar, mas, para uma série baseada na Lava-Jato, sim, isso vira uma questão, seja você contra ou a favor de Lula ou Jucá nesse contexto.

A frase “Independência ou Morte” não poderia surgir, em um filme fictício baseado na independência do Brasil, pela boca de D. Pedro II, e veja que ele tem mais afinidade com o pensamento do verdadeiro autor da declaração do que Lula tem com Jucá naquele contexto.

Sim, é ficção, não é documentário, como bem endossam os créditos que alertam para o fato de possíveis semelhanças serem meras coincidências. Mas, a partir do momento que se estabelecem relações muito claras entre personagens da tela e personagens reais, a coisa desanda. Quando Hollywood produz um filme como “Todos os Homens do Presidente”, não é possível absolver Richard Nixon no final. Daí, ou se faz uma produção baseada na realidade, com nomes e frases aleatórias, e não se utiliza frase alguma dita no noticiário, ou se permite apenas enfeitar os fatos, jamais distorcê-los.

Quando Steven Spielberg produz um filme como “The Post”, só para ficar em um exemplo mais recente, há uma honestidade intelectual com o episódio em que o editor-chefe do jornal “The Washington Post”, Ben Bradlee, bancou a publicação dos Papéis do Pentágono, documentos que denunciavam as mentiras contadas pelo governo americano sobre a Guerra do Vietnã.

Resta saber se Padilha está mais interessado em fazer uma espécie de “Bastardos Inglórios”, em que Quentin Tarantino mata Adolf Hitler em um cinema em Paris, criando, aí, sim, um episódio totalmente ficcional em cima da Segunda Guerra. Se a ideia era essa, faltou inventividade nos diálogos e ambiguidade nos personagens – e então, caímos de novo na questão básica de “O Mecanismo”: o problema é estrutural.

Aliás, um conceito que se tem repetido muito nos últimos três anos é que a realidade vem superando muito a ficção. E se a realidade já é suficientemente forte, com contrastes e conflitos mal retratados na série da Netflix, melhor teria sido buscar mais lógica nas referências da vida real.

Todo esse retrato é ruim para a própria imagem da Lava-Jato: ao tratar como “boboca” a frase de Jucá na boca de Lula e desdenhar de outras ditorções cometidas pela série, Padilha abre espaço para que os aliados ao ex-presidente diminuam os méritos da operação, o que também não se pode admitir. Como bem citou o jornalista James Cimino em entrevista com o diretor, “o fato histórico/público é o ponto de partida para a dramatização” de uma obra baseada em uma historia real. “O que se dramatiza é o que está por trás da cortina”. Só para citar um exemplo muito próximo, dentro de casa, digo, da Netflix, basta ver “The Crown”, como lembra Cimino.

De todo modo, no cenário do Fla-Flu, não há reação sem ação. No caso de “O Mecanismo”, uma bobagem gerou outra, e as réplicas e tréplicas vão se estendendo. Quando uma obra é baseada em um fato real, pode-se inventar muito em torno do fato, mas não se pode lutar contra o fato.

A premissa, sempre, como diz o jornalista Marcelo Godoy, é a seguinte: “A Polônia não invadiu a Alemanha”.

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Cristina Padiglione

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